Mães de Santo. Parte 4

Mãe Aninha

MATRIARCADO

Em todas as famílias, quando os filhos crescem e já são fortes o bastante, é natural que saiam de casa e trilhem seu próprio caminho. No candomblé não é diferente. Foi o que aconteceu com Maria Júlia da Conceição Nazaré, quando ela sentiu que podia criar a sua própria casa religiosa, fundada num terreno dentro da propriedade do belga Édouard Gantois. Alguns acreditam que essa saída se deu na época da sucessão de Iyá Nassô, mas as tradições orais apontam mais para o afastamento no período da sucessão de Obatossi, quando foi escolhida Maria Júlia Figueiredo para ser a nova mãe-de-santo da Casa Branca. Começa aí a frutífera e numerosa descendência desse terreiro.

De um modo ou de outro todos os candomblés saíram da Casa Branca – afirma o antropólogo Ordep Serra.

Como “grande mãe” dos candomblés baianos, essa casa religiosa cultiva com muito rigor suas tradições, mantendo, por exemplo, o princípio de não iniciar filhos-de-santo do sexo masculino até hoje. Depois de Marcelina Obatossi e Maria Júlia Figueiredo, estiveram à frente da casa Ursulina Maria de Figueiredo (Mãe Sussu), Maximiana Maria da Conceição (Tia Massi), Deolinda dos Santos (Oké), Marieta e agora a sua filha, Altamira Cecília dos Santos (Mãe Tatá).

Na sua época, Maria Júlia Figueiredo chegou a ser uma mulher de grande influência, principalmente entre a população negra da cidade. Esse poder fica nítido pelos títulos que ela possuía, resgatando organizações africanas nas quais as mulheres exerciam papéis importantes. Maria Júlia era uma Erulu, cargo máximo das mulheres na Sociedade Ogboni, que, segundo Renato da Silveira, funcionava como um poder moderador da sociedade civil iorubá. Maria Júlia era também uma iyalodé, o cargo máximo de uma mulher numa importante associação feminina que existiu nos reinos de Ibadan e Abeokutá. Mas isso não é tudo. Ela também era a provedora-mor da Devoção da Nossa Senhora da Boa Morte, fundada na Irmandade dos Martírios, e a ialaxé da Gueledé, um culto feminino às grandes mães do qual ainda se encontram resquícios nos terreiros mais antigos.

Conseguir falar com uma ialorixá da Casa Branca é uma tarefa árdua. Discretas ou desconfiadas? Não é possível saber, mas, certamente, como pioneiros que foram, os membros dessa casa conheceram muitos períodos difíceis e enfrentaram perseguições, o que pode explicar a opção pelo silêncio. Quem olha para o terreiro hoje em dia, num lugar acessível, terá dificuldades para entender o que essas mulheres enfrentaram para manter a sua roça. Por volta de 1938, quando esteve no Brasil, a antropóloga Ruth Landes foi levada até lá pelo etnógrafo Edison Carneiro, para uma festa de Oxalá. Em seu livro A Cidade das Mulheres ela narra o que viu:

O lugar ainda parecia uma mata e, quando o bonde parou ao pé do alto morro onde ficava o templo, pude apenas ver árvores imensas que se elevavam contra o céu claro.

Uma das histórias mais impressionantes sobre a violência contra os candomblés baianos é a da mãe-de-santo Nicácia, presa pelo Conde da Ponte, apesar de prestígio que possuía, de já ser uma senhora e da deficiência física na perna. No trajeto do Cabula até a prisão, onde hoje é a Câmara Municipal, ela foi acompanhada por uma multidão. Nessa época, ter prestígio entre alguns brancos podia ser motivo suficiente para a perseguição.

Mãe Tatá, atual ialorixá da Casa Branca, é uma das mães-de-santo baianas mais reservadas. O professor Ordep Serra a define assim:

Ela é muito discreta, fala pouquíssimo e é de uma sutileza e inteligência incomuns. Você pode entrar e sair de uma festa sem perceber que ela é a mãe-de-santo. Ela é simples e tranqüila.

A segunda mulher mais importante num terreiro é a mãe pequena e muitas delas se tornaram depois mães-de-santo. Em seu livro, Ruth Landes deixou um retrato vívido de uma das mães pequenas da Casa Branca, Mãe Luzia: uma mulher enorme, vigorosa e confiante, que conseguiu estabilidade financeira vendendo carnes no mercado, além de adornos e objetos do culto. Quando Landes a conheceu, Luzia tinha recentemente se tornado viúva, depois de um período longo de vida a dois. Filhos, ela só teve os de santo, o que já significava muito trabalho, como lhe contou Edison Carneiro:

Juntamente com a mãe, ela toma todas as decisões de importância para o templo. Além disso, ouve as lamúrias de inúmeros clientes e resolve os seus casos. Eles lhe pagam pelo serviço, mas ela destina boa parte do dinheiro para a manutenção do templo.

Pessoas de todas as casas sempre se referem com muito respeito à Casa Branca, inclusive porque foi ali que muitos se iniciaram. Em 1984, veio o reconhecimento – tardio, mas importante – com o tombamento da Casa Branca, primeiro templo religioso não católico a ser receber o título de Patrimônio Histórico do Brasil, pelo IPHAN. No dia da inauguração da Praça de Oxum, representantes de outros terreiros fizeram questão de comparecer e prestar as suas homenagens ao Ilê Axé Iyá Nassô Oká, também conhecido como Sociedade Beneficente e Recreativa São Jorge.

O terreiro do Gantois dispensa apresentações. Ele está entre as “grandes casas, as casas importantíssimas”, como diz o ensaísta Waldeloir Rego, que se define como um estudioso de assuntos antropológicos. Ele acrescenta ainda:

Essas casas não são grandes e importantes porque são do tamanho de um supermercado, mas porque tiveram uma linhagem importante de descendentes.

Desde as pioneiras, Maria Júlia da Conceição Nazareth e depois sua filha, Pulchéria da Conceição Nazareth, o Gantois sempre desfrutou de muito prestígio. Duas marcas dessa casa, especialmente desenvolvidas por Maria Escolástica da Conceição Nazareth – a sobrinha que substituiu Pulchéria e era mais conhecida como Mãe Menininha -, são a diplomacia e beleza dos seus rituais. Além, é claro, da seriedade e conhecimento litúrgico, o que sempre lhe garantiu uma multidão de filhos-de-santo, parceiros e admiradores.

A família de Maria Júlia da Conceição Nazaré, ou Omoniquê, veio de Abeokutá. O seu pai, Okarindé, era uma espécie de secretário do rei. Quando ela saiu do Ilê Iyá Nassô Oká e decidiu fundar a sua própria casa, manteve a regra de que só mulheres ocupariam cargos de chefia e acrescentou o critério do parentesco na sucessão. Sobre Pulchéria, filha de Oxóssi, conta-se que teve um desempenho tão marcante, que corruptelas de Gantois – canzuá e ganzuá – se tornaram sinônimo de candomblé. No tempo de Pulchéria, um dos freqüentadores era o médico Nina Rodrigues, pioneiro nos estudos sobre a cultura negra no Brasil. Mãe Menininha também conquistou muito respeito, tanto entre o povo, quanto entre figuras ilustres. Era procurada e admirada por pessoas como os médicos João Mendonça e Hosannah de Oliveira, intelectuais e artistas famosos, como Dorival Caymmi, Jorge Amado, Caetano Veloso e Maria Bethânia, além de políticos.

Mãe Menininha ainda não tinha um ano de idade quando foi iniciada e também assumiu cedo a chefia da casa, com apenas 28 anos. Quem a conheceu, garante que conhecimento, bondade, feminilidade e rigor reuniam-se nessa mulher com o mesmo equilíbrio. Ela gostava de definir o Gantois como uma casa de caridade e, de fato, a busca de auxílio e orientação sempre foram motivos que levaram muitas pessoas até lá. Mas outros atributos também contribuíram para a fama do Gantois e de Mãe Menininha.

Ela sempre foi amiga de todo mundo. Educadíssima, tratava todo mundo bem. Parecia até que tinha passado por uma escola pra aprender isso, mas ela nasceu assim. Era uma pessoa diplomática. Por exemplo, se ela estava fazendo o jogo pra você e saía alguma coisa que você não ia gostar de ouvir, ela se via doida. Fazia uma volta danada, pra dizer só mais ou menos, só sugerir a coisa que você não ia gostar – conta Waldeloir Rego, também conhecido como “pai dos colares”, pelas jóias e colares de iniciação que já fez.
Ruth Landes também teve a oportunidade de conviver com Menininha e deixou registrado uma outra nuance da sua personalidade: seu talento artístico. Num trecho do seu livro, registrou o comportamento da famosa mãe-de-santo durante um ritual:
Apesar da sua dor de cabeça, Menininha cantava e dançava sem parar, mexendo no xale que devia esconder-lhe os seios. Movia-se com leveza e rapidez, e por vezes era graciosa e dramática. E cantava encantadoramente, sem embustes e sem ‘espalhar brasas’, como se diz. Sentia-se que adorava cantar e dançar.

Com o esposo advogado, Mãe Menininha teve duas filhas – Cleusa e Carmem – que lhe sucederam à frente do Gantois.

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