A Moralização de Yemanja e a invenção da pomba gira. Parte 1

A Moralização de Yemanja e a invenção da pomba gira . Texto de Monique Auguras.

(parte 01)

Texto enviado pelo nosso irmão e leitor Macrio Couto. A quem damos todo o crédito deste material.

Foi Bastite quem chamou a atenção sobre a moralização a quem vinha sendo submetida a figura de iemanjá,atribuindu-a ao sincretismo com Imaculada Conceição.Como vimos, no entanto, o candomblé tradicional mantem bem vivas as características das mães ancestrais e parece que tal moralização, ou seja, o despojamento dos aspectos mais explicitamente sexuais, tem sido, nitidamente obra da umbanda.

Sabe-se que a umbanda incorporam em seu acervo elementos de diversas tradições religiosas presentes no Brasil, particularmente de origem africana, indígena, católica, espírita e ocultista. Ao longo dos anos foi-se diversificando e, ainda hoje, apresenta-se em continuo processo de transformação. Se, no seu inicio, podia ser vista como tentativa de “valorizar a macumba através do espiritismo” adequando-se aos valores da classe media emergente nos anos trinta, a tal ponto que Ortiz pôde detectar sinais de “morte branca do feiticeiro negro” agora esta sofrendo processo inverso de candombleização, que parece refletir o prestigio que o candomblé vem recentemente obtendo junto a sociedade mais ampla.

No Rio de Janeiro, entre outros desdobramentos, a umbanda deu origem a um culto especifico o “iemanjismo”, e sua grande festa, na ultima noite do ano, foi incorporada recentemente ao calendário oficial do Estado do Rio. A representação de Iemanjá que se vem difundindo superou em muito a imagem antiga da sereia ou da grande mãe cujos seios descem ate o chão. É uma moça branca, linda, de cabelos compridos, com vestido branco azulado que sai do mar, cheia de luz. Essa imagem impôs-se como única representação de Iemanjá, a ponto de moldar a expressão corporal de suas sacerdotisas, conforme observou Fry:

A mãe de santo se colocou em frente ao altar vestida com uma saia longa de lamê prateado e blusa de cetim azul. Ao receber os fluidos de Iemanjá assumiu a postura corporal da conhecida representação pictórica desse orixá, com os braços levemente erguidos. Logo em seguida, começou a cantar com uma voz redonda e afinada e com trêmulo de opera. A  melodia era a (Ave Maria de Gounod).

A assimilação de Iemanjá, mãe de todos os orixás, com Nossa Senhora, mãe de Deus, torna-se patente. A curiosa coletânea reunida por Zora Seljan bem mostra a amplitude que o culto foi ganhando ao longo dos anos na cidade do Rio de Janeiro. De acordo com Labanca, foi a partir do ano de 1952 que a oferenda no mar e nas praias começou a ser feita publicamente. Mais precisamente a noite do dia 31 de janeiro de 1957 marcou o primeiro grande culto organizado na praia do leme, sob a licença de Tancredo da Silva Pinto, umbandista ilustre. Daí para diante, o culto a Iemanjá tem-se tornado cada vez mais visível, espalhando-se das praias do Rio de Janeiro para o resto do Brasil.

Paralelamente parece que essa expansão se acompanhou de um processo de condensação, na figura de Iemanjá de todas as características das diversas entidades femininas da umbanda. Uma publicação afirma que “é sincretizadas com diversas Nossa Senhoras e a legião de espíritos ligada a ela reúne as caboclas Yara, Indaya, Nana-buruku, estrela do mar, Osum, Iansã e sereia do mar”. Vale dizer: embora se afirme a permanência das deusas oriundas  das religiões africanas e indígenas, seu poder esta submisso ao de Iemanjá, que passa a representar excelso modelo de figura feminina. Ainda que apresente traços sedutores, Iemanjá é antes de tudo a mãe boa, desafricanizada, espiritualizada, “vibração do mar”. Perdeu qualquer característica concreta que possa aludir a mulher real.

E, do ponto de vista que nos interessa aqui, é pura sublimação da sexualidade. Contrastando com essa figura quase imaterial, vem aparecendo no cenário da umbanda, uma entidade que, em todos os aspectos, é o seu contrario, a Pomba-gira.é bem verdade que, freqüentemente, o discurso dos umbandistas tende a situar a pomba-gira como entidade que pertence à quimbanda, ou seja à magia negra.

 

A Moralização de Yemanja e a invenção da pomba gira

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No entanto, a observação de campo ensina que umbanda e quimbanda na realidade não se apresentam como cultos tão distintos assim, e aqui será assumido o ponto de vista desenvolvido por Birman conforme o qual a quimbanda constitui uma categoria de acusação dentro da própria umbanda. No caso preciso da pomba-gira, é obvio que sua inclusão numa vertente vista de antemão como desprezível, negativa e comprometida com o mais “baixo espiritismo” só vem reforçar a importância de sua imagem em contraposição à Iemanjá da umbanda branca.

Mais chamativo  ainda o fato de que se trata de uma pura criação carioca, consistindo no desvirtuamento, por assim dizer, do nome de uma divindade masculina, equivalente congo do exu Yorùbá, transformado de repente na mais sensual e agressiva entidade dos terreiros fluminenses. Não se dispõe, por enquanto, de dados históricos que permitam situar com exatidão a época de seu aparecimento.

Pesquisadores que escreveram nos anos trinta sobre a “macumba carioca”, como Arthur Ramos, ou negros Bantus como Edison Carneiro, não lhe fazem referencia. Em seu sempre clássico Candomblés da Bahia, cuja primeira edição é de 1948, Carneiro assinala, contudo o nome de Bombojira, pelo qual e invocado exu nos candomblés de nação congo. “Bombojira vem tomar xôxô” convidando o homem de rua a vir receber o seu despacho. Do mesmo modo Waldemar Valente indica Bambojira como um dos nomes de exu nos xangôs do Recife. Bastite por sua vez, estabelece quadro comparativo de correspondências entre orixás nagôs, Voduns Jejes e Inquices dos Angolas e dos Congos, alistando entre estes últimos o nome de Bombojira, equivalente de Exu / Legba.

Mas quando descreve o grande desenvolvimento da umbanda no anos cinqüenta, não registra a presença de pomba-gira entre as entidades, sejam da “macumba urbana” sejam da “nova religião”. Chegando no Brasil em 1961, contudo, encontrei o culto da pomba-gira bem estabelecido no Rio de Janeiro e cabe perguntar porque pesquisadores como Carneiro, no rio, e Bastite em São Paulo, deixaram de perceber a importância dessa figura entre os ritos populares.

É possível que seu facinio pelo candomblé jeje-nago tenha obnubilado a sua visão de cultos de origem bantu e, como bem mostrou Negrão a respeito de Bastite, canalizou suas energias para o fortalecimento do padrão nagô de qualidade. Ate onde foi possível verificar, alias somente trabalhos recentes de jovens antropólogos vem dando destaque a pesquisa da umbanda e, conseqüentemente assinalam o papel da pomba-gira. Mesma assim raríssimos são os artigos em que a mesma e focalizada como figura central da investigação. As notas que seguem devem, portanto, ser lidas como tentativa de sistematização que visa, sobretudo a levantar questões em torno das significações simbólicas que acompanham a imagem mítica da pomba-gira.

A transformação de Bombojira, equivalente congo do exu Yorùbá deus fálico, mediador em divindade feminina, esta por merecer estudo especifico. Nesse fenômeno, poder-se-ia talvez encontrar algum eco das teorias de Max Muller, que via no mito uma doença da linguagem e postulava que palavras ambíguas geram deuses. Não parece haver duvidas de que o nome de pomba-gira resulta de um processo de dissimilação que primeiro transforma Bombojira em Bambajira, depois, em pomba-gira, recuperado assim palavras que possam fazer sentido em português. Pois a gira palavra de origem Bantu (njila / njira, caminho, rumo) remetida ao português girar, e, como, sabemos, a roda ritual da umbanda. E “pomba”, por sua vez, alem de ave, designa também órgãos genitais, masculino no nordeste e feminino no sul.

Ate no nome, aparecem a ambigüidade e a referência sexual. Nos terreiros do Rio de Janeiro, porém, a pomba-gira nada tem de masculino. É um exu fêmea. A literatura especializada e bem explicita a esse respeito. “a mulher de exu ou a fêmea é pomba-gira ou bombojira”, escreve Teixeira neto , que tem, como se vê, referencias eruditas. De acordo com esse autor seriam três as modalidades fundamentais de pomba-gira. Alem da entidade propriamente dita, há mulheres que, “quando desencarnadas, entregam-se a sete exus e assim também passam a se apresentar como pertencentes ao povo de pomba-gira”. Alem desse há também o casso de mulher que, em vida, tenha excedido, qual verdadeira messalina, na pratica de atos sexuais, ao desencarnar, poderá muito bem passar a se apresentar como pomba-gira. Vale dizer, o povo de pomba-gira e formado por espíritos de mulheres que se entregaram à fornicação, seja em vida seja depois da morte

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