Xangô, Rei de Oió. Parte 03

Xangô, Rei de Oió

Reginaldo Prandi

Armando Vallado

III: A corte do rei

A importância de Xangô na constituição do candomblé, que é brasileiro, pode ser identificada também quando examinamos as estruturas hierárquicas e a organização dos papéis sacerdotais do candomblé em comparação com o ordenamento dos cargos da própria corte de Oió, a cidade de Xangô. Não há dúvida que as sacerdotisas e sacerdotes que fundaram os primeiros templos de orixá no Brasil tinham grande intimidade com as estruturas de poder que governavam a cidade do Alafim. O candomblé é, de fato, uma espécie de memória em miniatura da cidade africana que o negro perdeu ao ser arrancado de seu solo para ser escravizado no Brasil.

Vejamos alguns dos cargos mais importantes da corte de Oió e sua correspondência com a hierarquia do candomblé de nação nagô.

Basorun – primeiro ministro e presidente do conselho real, que tinha mais poder que o próprio rei, exercendo também a função de regente quando da morte do rei até a ascensão do sucessor. No candomblé é título dado a homem que ajuda na administração do terreiro, um dos membros do corpo de ministros em terreiros dedicados a Xangô.

Alààpínní – chefe do culto de egungum. No Brasil, igualmente alto sacerdote do culto dos ancestrais.

Balògún – chefe militar. No candomblé, cargo masculino de chefia da casa de Ogum. O falecido oluô Agenor Miranda Rocha, foi, por mais de 70 anos, o balogum da Casa Branca do Engenho Velho.

Lágùnnòn – embaixador do rei que tinha como encargo o culto ao orixá Ocô, divindade da agricultura. No candomblé, espécie de ajudante do pai-de-santo na provisão do terreiro.

Akinikú – chefe dos rituais fúnebres. No Brasil, oficial do axexê, que pode ser um babalorixá ou ialorixá ou algum ebômi ou ogã especializado nos ritos mortuários.

Asípa – representante dos governadores das aldeias na corte de Oió e encarregado do culto ao orixá Ogum. No Brasil, dignidade masculina.

Isugbin – corpo de tocadores e musicistas do palácio. No candomblé são chamados alabês, nome que na África era dado aos escarificadores, os que faziam os aberês, as marcas faciais identificadoras da origem.

Ìlàrí – corpo de guardas da corte e de mulheres. Adoradores de Oxóssi e Ossaim, eram também uma espécie de mensageiros e provedores reais. No candomblé, sacerdotes que cuidam da casa de Ossaim.

Èkejì òrìsà – literalmente, a segunda pessoa do orixá, cargo sacerdotal da corte do Alafim, sacerdotisa que não incorpora o orixá, mas que cuida de seus objetos sagrados. No candomblé, equede, todas mulher não-rodante confirmada para cuidar do orixá em transe e de seus pertences rituais. O cargo, elevado na África, deu às equedes posição de relevo também no candomblé, onde têem o grau de senioridade.

Ìyá-nàsó – mãe do culto do Xangô do rei (divindade pessoal). No Brasil, nome de uma das fundadoras do candomblé e título feminino.

Ìyáalémonlé – encarregada de cuidar do assentamento pessoal do rei. Entre nós, quem cuida do assentamento principal do pai-de-santo.

Ìyá-lé-òrí – mãe dos ritos de oferecimento a cabeça do rei, mantém a representação material da cabeça do rei em sua casa. No candomblé preside o bori.

Ìyá mondè ou bàbá – Mulher que cultua os espíritos dos reis mortos. Chamam-na também de Bàbá. O alafim dirige-se a ela como “pai”, pois elas detêm a autoridade do “pai”, como as dirigentes da umbanda brasileira, também chamadas de babá.

Ìyá-le-agbò – prepara os banhos rituais do rei. No candomblé, mulher que cuida dos potes de amassi.

Ìyá-kèré – chefe das mulheres ilaris; é ela quem coroa o rei no ato de sua entronização. A atribuição, mantida, é hoje no candomblé da competência de pais e mães-de-santo que colocam no trono o novo chefe do terreiro nas ocasiões de sucessão.

Muitos outros títulos do candomblé foram tomados de outras cidades e instituições que não a corte de Oió, mas é inescondível a importância da cidade de Xangô na estruturação dos terreiros brasileiros de origem iorubá.  De toda sorte, são variadas as adaptações, muitas vezes esvaziando-se o cargo de suas funções originais.

Com o sentido de reforçar a idéia do terreiro de candomblé como sucedâneo da África distante, para legitimar suas estruturas de mando e valorizar sua origem, cargos de tradição africana são recuperados e adaptados com certa liberdade pelos dirigentes brasileiros. Assim surgiram os obás ou mogbás de Xangô, conselho de doze ministros do culto de Xangô, instituído inicialmente no terreiro Axé Opô Afonjá na década de 1930 por sua fundadora Mãe Aninha Obabií, assessorada pelo babalaô Martiniano Eliseu do Bonfim, e depois reinstalado nos mais diferentes terreiros que têm Xangô como patrono. Os obás brasileiros de Xangô têm funções diversas daquelas africanas, mas os nomes dos cargos são referência constante à vida político-administrativa dos iorubás antigos. Eles são divididos em ministros da direita, com direito a voto, e ministros da esquerda, sem direito a voto. Cada um deles conta com dois substitutos, o otum e o ossi.

O conjunto dos obás da direita criados por mãe Aninha é constituído dos seguintes cargos: Abíódún (nome que designa aquele nascido no dia da festa); Àre (título que se dá a uma pessoa proeminente da corte); Àrólu (o eleito da cidade); Tèla (nome masculino da realeza de Oió); Odofun (cargo da sociedade Ogboni); Kakanfò (título do general do exército). Os da esquerda são: Onansòkun (pai oficial do obá de Oió); Aressá (título do obá de Aresá); Eleryin (título do obá de Erin); Oni Koyí (título do obá de Ikoyi); Olugbòn (título do obá de Igbon); e Sòrun (chefe do conselho do rei de Oió). Estes nomes designam hoje postos sacerdotais, dignidades religiosas; na África designavam cargos de homens poderosos que controlavam a sociedade ioruba e suas cidades.

Um rei africano era, antes de mais nada, um guerreiro. Guerras, conquistas, povoamento de novas terras, escravidão, descoberta e renascimento, tudo isso faz parte da história de Xangô, rei e guerreiro, como faz parte das memórias de nossa própria civilização de brasileiros. Mas Xangô é mais que história da África e mais que história do Brasil. Seu duplo machado visa a justiça para cada um dos dois lados que se opõem na contenda, suas pedras-de-raio são o santuário guardião das esperanças de tanta gente que padece em conseqüência das mazelas de nossa sociedade: desemprego, falta de oportunidades, incompreensão e dificuldade no trabalho, escassez de meios de sobrevivência, perseguição e disputas insanas, inveja, complicações legais de toda sorte, e tantas outras coisas ruins. Apelar a Xangô, para o devoto, é buscar alento, realimentar esperanças, prover-se de  forças para a difícil aventura da vida.

Mas no terreiro em festa, sob o roncar frenético dos tambores, a dança de Xangô não é tão somente demonstração de energia e de força marcial,  de cadência e de vitalidade, mas igualmente harmonia, graça e sensualidade. Xangô é duro, mas também se compraz com o bom da vida. O paladar de Xangô lembra as qualidades do bom glutão que não dispensa jamais o prazer da boa mesa, tanto que até nos faz pensar nele como um rei gordo e guloso. Tanto é assim que suas oferendas votivas devem ser sempre servidas em grande quantidade, pois Xangô aprecia que seus súditos comam muito e bem.

Seu prato predileto é o amalá, comida feita à base de quiabo, camarão, pimentas de várias qualidades, e tantos outros condimentos que são verdadeiras iguarias, utilizados pelas filhas-de-santo que muito apreciam e disputam a preparação da comida para os deuses. A comida  servida no terreiro serve também para “reunir gente”, e Xangô é o orixá que mais as acolhe, pois toda corte é repleta de súditos e não seria diferente no terreiro, onde há sempre muita gente, muita dança e muita comida.

Além de orixá comilão, Xangô também é o grande amante e teve muitas mulheres como contam seus mitos. Um deles relata que Xangô era um rei poderoso, um dia apareceu em seu reino um grande animal que devorava a todos, homens, mulheres e crianças. Xangô, acompanhado de suas três mulheres resolveu enfrentar o animal monstruoso. Xangô amava suas esposas, mas amava também todos os homens e mulheres que o acercavam, e nada mais natural do que defendê-los de tal criatura. O ser monstruoso rugia e toda a terra tremia. Xangô não quis soldados para vencer o animal. Xangô lançou chamas de sua boca e derrubou o animal matando-o depois num só golpe com seu oxé. Vitorioso, Xangô cantou e dançou, estava feliz. Dali em diante foi ainda mais amado pelos homens e mulheres de seu povo e por todos aqueles que ouviram falar de seu feito.

No Brasil, o aspecto erótico da representação de Xangô foi muito atenuado em comparação a Cuba, onde seus gestos de dança insinuam relações sexuais e seus objetos de forma fálica enfatizam seu gosto pelo sexo. Mas mesmo entre nós é o orixá de muitas esposas. Tantas mulheres e tantas paixões carnais não reforçam e são a confirmação de que a vida pode ser plena das doçuras e gozos do amor? O que queremos dizer é que Xangô não nos remete tão somente aos aspectos sérios, circunspectos e duros dos compromissos do dia-a-dia, mas nos faz lembrar, sim, o tempo todo, que a vida é muito boa para ser vivida, e por isso mesmo temos que lutar por ela sem descanso. É por essa razão que o fiel sempre pede passagem para o rei,   gritando para o povo reunido em festa: “Deixai passar, deixar passar Sua Majestade”, “Kaô, kaô Kabiessi”.

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