O POVO DE RUA

O POVO DE RUA

Denise Zenicola

Canto, dança e batuque no laser

Um homem com as mãos no ar e uma mulher com as mãos nas cadeiras dançando um em direção ao outro ( RUGENDAS).

Eram muitos os dias santos que, somados aos domingos, passavam de cem, restando para o trabalho, um ano útil de aproximadamente 250 dias.  Os senhores de escravos constantemente não respeitavam  tais dias festivos alegando uma interrupção das atividades de produção e de terem a preocupação com o que poderiam “aprontar” os escravos.

Em seu pouco tempo de lazer os escravos atuavam em reuniões religiosas  secretas nas quais preservavam antigas crenças, treinavam Capoeira, ou simplesmente iam para as ruas se encontrar, cantar, dançar e batucar.   Os registros policiais declaram uma aglomeração de aproximadamente 1800 escravos no campo de Santana onde, em tal ocasião, …“os dançarinos movimentavam-se dentro e fora de um grande círculo com “todas as variedades concebíveis de contorções e gesticulações, enquanto quem observa no círculo dava gritos de aprovação e batia palmas”.(GRAHAM, 1988, 327)

No início do século, quando tais festejos eram permitidos no Rio. Luccock observou africanos realizando …“uma dança tradicional com uma longa ráfia cobrindo-lhes as cabeças e ombros”, que entendemos poder ser uma dança ritual para Omulu, o deus da varíola.   No casamento de D. Teresa e D. Pedro, “representantes das nações africanas no Rio dançaram diante de suas altezas reais, ao som de seus instrumentos ‘bárbaros’”(GRAHAM, 1988, 328).

O tocar dos tambores propiciava o agrupamento de escravos.  Tal fato, em1833, foi proibido por um juiz, alegando que o som dos atabaques atraía escravos de fazendas mais distantes e a polícia passou a prender os que dançavam ao som dos atabaques. “A polícia dispersou um grupo de mais de 200 escravos que estava dançando ao som de tambores” (GRAHAM, 1988  ,316 ).   A origem de tal proibição foi  possivelmente o perigo potencial que tais aglomerações poderiam apresentar.

Por volta de 1849, para driblar esta proibição, os escravos utilizavam praticamente qualquer objeto que estive ao alcance como instrumento de percussão. Passam a utilizar a idéia de bricolage, usavam o que se tinha em mãos:  peças de cerâmica e ferro, conchas, pedras, latas e até pedaços de madeira e as mãos.  Desta forma, os escravos passaram a dançar também ao som das palmas.  Conforme Debret …“um grupo de quarenta negros “da nação mais bárbara” contentava-se em bater palmas em uníssono perfeito, sem música ou palavras”(GRAHAM, 1988,316).

O bater da palmas ritmadas alcançava variações como duas rápidas e uma lenta, a batida mais comum.  “Os viajantes encontravam em todos os lugares do Rio escravos que improvisavam canto e dança batendo palmas em torno de fontes e nas praças.   Em algumas de suas imagens, os escravos batiam palmas e dançavam ao som de tambores, enquanto em outras não se viam instrumentos” ( GRAHAM, 1988, 316).  Apesar das proibições e perseguições da polícia, os escravos cariocas continuaram realizando danças na cidade. Três das mais representativas deste período eram o Lundu, o Batuque e a Capoeira.

O barulho e as histórias da rua, as idéias e imagens de representação coletiva com suas origens e deslocamentos dentro do espaço público fascinavam os viajantes que pintavam freqüentemente seus trajes originais.  Como define Brook, um verdadeiro “Teatro Rústico” ou, como preferimos nomear uma verdadeira Performance Urbana do Cotidiano, nem por isso menos espetacular. Nas ruas, três elementos marcavam e delimitavam o acontecimento desta Performance Urbana do Cotidiano: A repetição ou o lado mecânico do processo, rodas de cantos e danças que se formavam constantemente, a celebração ou melhor a representação que pode tornar presente tradições e mitos  ancestrais dando-lhes vida e a assistência,  uma platéia sempre presente e participativa.  Nas ruas aconteciam performances compostas de aspereza, suor, barulho, cheiro, presentes em qualquer tempo e espaço, com o povo participando. Performances próximas do povo, que se retro alimentavam dele.

Entre proibições e formas alternativas de festejos, os músicos e vendedores ambulantes que tocavam guitarras européias e atabaques, cantavam e dançavam ao ritmo de palmas ou tambores iam juntando suas tradições musicais em instrumentos diversos, criando uma acumulação de bens culturais.   O Rio, a capital do Império e principal centro urbano da América do Sul neste período, através do povo de rua produzia  música, canto e dança mesclado numa mistura de sons e movimentos, forjando um estilo brasileiro harmonioso e peculiar. A escravidão , nesse caso, era realmente uma cacofonia de tradições culturais  exóticas.

(1) Uma teoria afirma que ela surgiu entre os escravos do Rio que carregavam coisas em grandes cestas, conhecidas como capoeiras, sobre a cabeça.   Trabalhando nas ruas, nas praias e nos mercados, aprenderam a proteger suas mercadorias e a si mesmos dando golpes potentes com os pés e a cabeça,  acabando por estilizá-los numa forma de dança. (GRAHAM, 1988, 331)

 

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