Porque ser abian (o filho mais novo)

Porque ser abian (o filho mais novo)

Ser abian é viver a emoção de sentir a energia do seu orixá, de aprender a identificá-la e de, aos poucos, ir percebendo como ela vai se moldando a você e você a ela. É nesse período que o orixá inicia o seu processo de desenvolvimento junto ao abian e vai embutindo no mesmo muitas das suas características. É nesse momento também que o abian vai criando uma relação de afinidades com o seu orixá, que aprende a ouvi-lo de uma forma que ninguém mais consegue, pois o orixá não se comunica melhor com outra pessoa que não seja com o seu próprio filho, afinal é este quem carrega essa energia sublime e única.

Acredito que uma pessoa que antes de se iniciar na religião tenha passado por essa fase esteja mais preparada e consciente do que é a vida após a iniciação. Será uma nova vida, onde muitas vezes será necessário que se abdique de muitos momentos particulares em prol da vida religiosa, ou seja, em razão do que se acredita e do que um dia escolheu para viver, portanto, é indispensável que esteja convicta dessa escolha, pois ela mudará completamente a sua vida. Mas o que vale é que se a pessoa estiver feliz com a presença do orixá no seu cotidiano, as demais questões se ajustarão e será possível viver de forma harmoniosa em todos os aspectos.

Penso que neste momento muitos devem estar se perguntando qual é a importância de ser abian se em muitas Casas de Axé o que se vê são pessoas chegarem e pouco tempo depois serem iniciadas. Não direi que essa atitude esteja errada, mas o que vejo é que em muitos casos, após todo o ritual, surgem as dúvidas e arrependimentos, especialmente se o iniciado for uma pessoa que não conheça absolutamente nada sobre a religião antes da iniciação. Depois vêm a decepção, as desculpas para não estar presente no egbé (comunidade) nos dias de funções e tantas outras justificativas.

Uma situação muito comum são pessoas que não conhecem nada a respeito do Candomblé, mas que vão às festas e se encantam, ficando deslumbradas com as roupas, os fios de contas, com as cantigas, o som dos atabaques, as danças e, principalmente, a presença dos orixás entre nós, e nem sequer imaginam que tudo aquilo que veem não é um show folclórico ou algo parecido. Por isso pensam que a relação de um iniciado com a sua Casa seja apenas naqueles momentos de deslumbres e de encantamentos. Não têm noção que essa é uma relação que deve perdurar por toda uma vida, pois criam-se laços com o seu orixá e com todas as pessoas que fazem parte dessa Casa, ou seja, o iniciado terá uma nova família e dentro dela terá uma série de obrigações. Sendo assim, é indispensável que toda e qualquer pessoa que deseja se iniciar passe a frequentar uma Casa primeiramente como abian, porque será nesse período que ela aprenderá bastante sobre a religião, verá como funciona o dia a dia da Casa, além de ter a oportunidade de, durante esse tempo, refletir sobre o que de fato ela deseja.

É importante que todos que um dia pensem em fazer parte do Candomblé se informem, conheçam e entendam o que é a religião, que busquem Casas tradicionais e sacerdotes sérios e comprometidos para que não haja, posteriormente, dúvidas e decepções que poderiam ser evitadas se houvessem esses esclarecimentos prévios, pois o Candomblé é fé e amor aos Orixás, mas também é compromisso, disciplina e responsabilidade para com os mesmos e com toda a comunidade.

Por isso reitero que é sendo abian que se aprende muito sobre o seu orixá, sobre o sentido do que é o respeito à hierarquia, disciplina, humildade, dentre tantos outros conceitos, muitos deles já perdidos na nossa sociedade. Esse período é essencial para que a pessoa perceba se será nessa Casa que desejará continuar e um dia se iniciar para o seu orixá. É preciso que se tenham todos esses pontos esclarecidos e bem definidos porque a partir da iniciação as responsabilidades e o vínculo com a Casa mudarão completamente, o que até então não existiam com tanto rigor enquanto era apenas abian. Por esse motivo volto a frisar a importância de se entender a religião sobre o olhar de abian, porque nesse momento é possível desmistificar muitas questões, além de ter a possibilidade de conhecer a si mesmo mais intimamente.

O Candomblé é uma filosofia de vida, sendo assim, quando uma pessoa decide fazer parte dele de forma consciente e compromissada por amor aos orixás, ela naturalmente viverá bem e feliz. Mas deixo bem claro aqui que viver na religião e para a religião não será sempre um mar de rosas, pois ser do Candomblé requer que nós trabalhemos diariamente o respeito, a humildade e, especialmente, a paciência, pois em muitos momentos ouviremos e veremos o que não nos agradará e ainda assim teremos que seguir em frente, buscando a sabedoria para compreender o porquê de cada situação e/ou atitude de pessoas dentro da Casa de Axé tendo bem claro um ponto fundamental, qual seja, o caminho que nós pretendemos trilhar dentro da religião. Muitas vezes chego a pensar que para sermos do Axé é necessário que sejamos “casca grossa”, pois senão não suportaremos passar por certas situações que ocorrem no nosso dia a dia no egbé.

O que precisa ficar bem claro para todos é que vivenciar o cotidiano de uma Casa de Axé não é muito diferente do que vivenciamos nas nossas famílias biológicas. Nestas, nós temos pessoas com personalidades totalmente distintas e que com o passar do tempo vamos nos adaptando para que possa haver uma convivência pacífica. Uma grande diferença que existe entre a nossa família biológica com a do Axé é que na comunidade religiosa, além de ser necessário que você se adapte às diversas pessoas que ali estejam, é mais do que preciso que você não se esqueça da adaptação mais importante, ou seja, a sua à Casa em que você se encontra, às pessoas que façam parte dela e, principalmente ao seu orixá, afinal, sentir-se parte integrante da comunidade facilitará o seu caminhar nessa estrada que é longa e de um eterno aprendizado. Por isso costumo dizer que ser abian é enamorar-se pelo seu orixá, é conhecê-lo mais profundamente e criar laços cada dia mais íntimos. Acredito que esse seja o segredo para que você seja um bom abian hoje e futuramente um bom yawô e, posteriormente, um egbomi. Além disso não devemos esquecer o quão importante é a presença dos abians nas Casas de Axé, afinal é impossível pensarmos no Candomblé sem renovação, sem novas gerações para a manutenção do mesmo. Uma Casa sem abians é uma Casa sem perspectivas de futuro.

E para finalizar, deixo claro que ser do Candomblé é renascer para uma nova vida, esta que será privada de muitos momentos particulares, mas que te trará tantos outros importantes e inesquecíveis de alegrias, tristezas e, acima de tudo, de reflexões para que você seja um ser humano melhor.

Cátia Silva

Em 14 de Outubro de 2014.

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