Jurema: Representações urbanas e drama social afro-indígena

Jurema: Representações urbanas e drama social afro-indígena

Parte 1

José Flávio Pessoa de Barros[1]

O presente trabalho é uma reflexão sobre a Jurema e suas múltiplas acepções, e de como elas se inserem nas diferentes representações contidas no sistema de crenças, onde negros, índios e colonizadores europeus se mesclaram e foram partícipes desse imaginário, cada um deles contribuindo de maneira efetiva para as diferentes concepções formadoras da nacionalidade e da identidade brasileira. O que chamamos aqui de Complexo da Jurema está relacionado às trocas entre estes elementos formadores da sociedade nacional desde o início da história do Brasil. Estas diferentes etnias construíram um imaginário em que participaram, ora como opositores, ora como aliados, formando uma cultura extremamente complexa e refinada. A maior proximidade deu-se entre índios e negros que, desde o início da colonização, estavam juntos, algumas vezes nos quilombos como subjugados, outras em situação de conflito, acompanhando os interesses do colonizador, e ainda como grupos independentes que conviviam e trocavam influências entre si. Trata-se, portanto, de uma longa jornada que vai da escravidão e se estende até os dias atuais.

Não pretendemos refazer essa história e sim falar do entrelaçamento dessas representações enquanto grupos subalternos e colocados à margem da cultura dominante. Os saberes originais possibilitaram um diálogo onde plantas, mitos, deuses e ancestrais foram os amálgamas de uma nova forma de relação, construção identitária e resistência cultural, tanto em nível ideológico, quanto econômico, possibilitando novos arranjos sociais e fornecendo elementos significativos e respostas ao processo político imposto pelo poder das elites econômicas.

O texto contido na música sagrada das religiões de matrizes africanas, especialmente na Umbanda, será um dos fios condutores das análises por nós realizadas, sempre procurando mostrar as conexões, entre outras representações religiosas onde a Jurema ocupa um lugar privilegiado. Nossa maior preocupação está contida justamente no papel que Umbanda teve e continua tendo na disseminação destes conteúdos simbólicos.

O uso do meio-ambiente possibilitou a utilização recíproca de símbolos e a construção de uma cosmogonia. O mundo vegetal desempenhou um papel significativo na sobrevivência, tanto físico-biológica, quanto material, e, em especial, nas concepções ideológico-simbólicas, tornando-as plenas de significado cultural e expressas em um novo contexto sócio-histórico.

A vida vegetal é um dos segmentos mais óbvios de qualquer tipo de cultura, seja ela primitiva ou desenvolvida, antiga ou moderna (FORSBERG, 1960).

Quatro grupos sociais serão particularmente destacados na tentativa de elucidação deste complexo cultural: um grupo indígena – os Kariri-xocó de Alagoas – e os integrantes religiosos de três diferentes expressões das chamadas religiões afro-brasileiras, inseridas dentro de um contexto urbano: a Umbanda, o Catimbó e o Candomblé.

Trabalho de campo

A metodologia utilizada procurou identificar os vegetais utilizados nas cerimônias religiosas pelos grupos em questão, uma descrição sucinta dos rituais onde se desenrolaram as cerimônias religiosas, bem como uma análise simbólica dos textos utilizados como cânticos nos rituais de Umbanda e nos Candomblés de caboclo de origem Bantu situados na periferia de Alagoas e Rio de Janeiro.

Alguns dados preliminares utilizados em pesquisa anterior e já publicados (PESSOA DE BARROS e MOTA, 2002) também serão anexados e farão parte das análises já realizadas no final da década de 90, assim como novas questões surgidas a partir da análise dos textos das canções empregadas nas cerimônias onde as diferentes representações sobre a Jurema aparecem.

Existem, portanto, vários níveis de análise, sendo seu principal enfoque o interdisciplinar, pois, à simbologia privilegiada pela visão antropológica, unem-se as taxonomias biológicas e populares, como também o estudo farmacológico dos princípios ativos encontrados nas espécies em questão. Também serão considerados alguns aspectos ligados a etnomusicologia e a etnobotânica, procurando, reconciliar o saber empírico das comunidades em contato íntimo com a natureza e o saber acadêmico, conforme preconizado por Pelt (1983).

As plantas

A Jurema é conhecida como a “droga do sertão” e o seu nome vem do tupi, yu-r-ema. Existem cerca de sete espécies de arvores ou arbustos conhecidas sob o nome genérico de Jurema. São classificações populares: Jurema-mansa, Jurema-branca, Jurema-de-caboclo, Jurema-de-espinho, Jurema-preta e  Jureminha.

Maria Thereza Lemos de Arruda Camargo (1988), considerando as confusões a respeito das classificações cientificas da Jurema, sugere que se continue a aceitar as divisões propostas por Pio Corrêa (1926):

Jurema-preta: Mimosa hostilis Benth e Acacia hostilis Benth. Sinonímia popular: espinheiro.
Jurema-branca: Acacia piauhyensis Benth, sinonímia popular: espinheiro-bravo; Pithecolobium acacioides Ducke, sinonímia popular: Arapiraca (Pará), esponjeira; Phitecolobium dumosum Benth, sinonímia popular: rompe-ibao, acatrapa; Phitecolobium diversifolium Benth, sinonímia popular: arabita (Piauí), brinquedo-de-macaco (Bahia); Mimosa verrucosa Benth, sinonímia popular: Jurema-das-matas, Jurema-de-espinho ou Jurema-das-oieiras.
Jurema: Phitecolobium tortum Mart; Acacia vicentis Griseb e Acacia vicentis Benth. Sinonímia popular: angico-branco, jacaré, vinhático-de-espinho.
Jureminha: Vitex agnus-castus Verbenaceae; Eupatorium inulaefolium HBK; Lippia chamissois Die verbenaceae. Sinonímia popular: Jurema-branca

Esta última classificação, Mota (1987) nos informa que é usada entre os Kariri-xocó e chamada de Jurema-branca. No Rio de Janeiro, também é conhecida com Jureminha e utilizada em vários rituais de Umbanda e Candomblé (Angola), especialmente durante o período de iniciação. Esta planta é usada desde a Idade Média, na Europa, como um inibidor da libido.

As espécies vegetais acima identificadas fazem parte das cerimônias e rituais dos grupos anteriormente citados, especialmente sob a forma de infusão, recebendo, genericamente o nome de “Vinho da Jurema”. Mais adiante examinaremos os diferentes contextos onde esta bebida é ritualmente ingerida.

[1] Professor Doutor (USP), pesquisador da UERJ e consultor ad-hoc da FAPERJ.

Fale Conosco