Iorubá dos terreiros, parte 2

Iorubá dos terreiros

Pesquisa bibliográfica, entrevistas e elaboração dos textos:  Agnes Mariano / agnesmariano@gmail.com

Para quem está ligado à religião africana, por fé ou laços sangüíneos, o contato com o iorubá é freqüente, mas cerimonioso, afinal trata-se “da língua dos orixás”, lembra o babalorixá Gean, filho-de-santo do Ilê Axé Oxumaré. Na maioria dos casos, o aprendizado e a prática acontecem simultaneamente. “De vez em quando minha tia fala iorubá com a gente quando está na mesa, para pedir alguma coisa”, conta Andreia Santos, 16, referindo-se a Mãe Stella de Oxóssi. Mas é participando dos rituais, principalmente ouvindo e cantando as louvações aos orixás durante as festas, que Andreia e Iraildes vão, aos poucos, aprendendo a língua. “Quando você canta alguma coisa errada, a pessoa que está tirando as músicas corrige, mas é tudo muito sutil, ninguém nota, só as meninas do coro e os alabês, que são os músicos”.

O Ilê Axé Asipá, na Paralela, cuida com rigor da transmissão do iorubá aos mais jovens, organizando até aulas periódicas, das quais participam também os garotos do Afonjá. As sessões sobre vocabulário e pronúncia são feitas com Mestre Didi, o primeiro brasileiro a fazer um dicionário de iorubá, na década de 50. O mestre, que não fala com jornalistas, é apontado como um dos baianos mais fluentes na língua e como um dos grandes responsáveis pela retomada de contato entre as casas religiosas baianas e a África. Filho de Mãe Senhora, uma das ialorixás mais importantes e influentes que o Brasil já teve, Mestre Didi é também sacerdote do Ilê Asipá.

Quando teve a honra de receber em sua casa religiosa a visita de um rei de Ketu, o babalorixá Silvanilton, do Ilé Axé Oxumaré, comprovou que há mesmo grandes diferenças entre o iorubá que se fala nos terreiros baianos e o que existe hoje na África. Mas, ele conta emocionado, através da música, a comunicação se estabeleceu. “Quando eu cantei, o rei ficou muito alegre, porque entendia o que eu estava dizendo. Ele dizia: ‘Orixá. Orixá’. E perguntava: ‘Como, como vocês conseguiram manter’”?.

Na religião africana, “toda a força está na palavra, tudo que se faz envolve a palavra. Por isso, acredito que o iorubá foi preservado”, afirma o paulista Riz Maglio, iniciado na religião há 22 anos. Participando de uma religião de iniciação, que valoriza a experiência e o tempo de convívio, a língua iorubá pode servir também para evitar que o iniciante ou o visitante entenda algo sigiloso que está sendo dito. Um recurso que pode ser usado também em outras situações, como precisou fazer o babalorixá Silvanilton, para conversar com seus filhos-de-santo durante uma audiência do processo que moveu contra a TV Record, por ter veiculado uma reportagem com montagens que deturpavam a sua imagem e voz.

Segundo o cientista social Marco Aurélio Luz, na tradição africana o conhecimento é um valor: quanto mais você conhece cantiga, mais valor você tem:

O valor não está na acumulação de bens, mas no aumento do ‘existir’, que é a prole numerosa, o número de irmãos, filhos, pessoas do grupo, uma inserção comunitária em que se é bem considerado: uma vida extensa. E para ter um aumento nesse ‘existir’, que garante uma vida tranqüila – onde você cuida muito dos outros, mas também terá muitos para cuidar de você – é fundamental a proteção da religião. E é através da liturgia, onde o iorubá tem um papel fundamental, que se pode ter contato com as entidades da religião.

LÍNGUA CANTADA
Ainda que as casas religiosas sejam os grandes difusores da língua, a presença do iorubá ultrapassa os limites dos terreiros. Está em nosso repertório verbal, em palavras que todos nós falamos, nas gírias, nos nomes das ruas, de instituições e influencia até, acreditam alguns especialistas, no português falado cotidianamente por qualquer baiano culto. Alguns exemplos são os nomes dos blocos afros Olodum e Ilê Aiyê, da banda Didá, a Avenida Ogunjá e até um recente outdoor com uma frase inteira em iorubá, anunciando uma concessionária da Avenida Bonocô que, dizem alguns, também é uma palavra africana, mas provavelmente não iorubá.

Quando iniciou a sua pesquisa de mestrado, ouvindo crianças e jovens do Afonjá, a lingüista Iracema de Souza, professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal da Bahia (Ufba), surpreendeu-se com a presença do iorubá na comunidade. “Autores como Antonio Houaiss sempre afirmaram que a influência de outras línguas no português brasileiro é mínima, mas fui percebendo que não era bem assim”. Aprofundando a sua pesquisa sobre a diversidade lingüística na realidade afro-baiana, tema do seu doutorado, a influência do iorubá despontou ainda mais. Agora, Iracema e mais seis pesquisadores da Ufba tentam mapear os detalhes da influência da língua africana: “Além das palavras em iorubá, encontramos termos do português sendo usados para veicular sentidos africanos e também certos procedimentos lingüísticos que remetem ao idioma”.

As diferenças entre o iorubá que se fala na Bahia e o que existe hoje na África são reais. Enquanto na Bahia manteve-se um iorubá arcaico, na África, a colonização européia deixou marcas profundas, na língua e na cultura locais. O professor do idioma Gilberto Baraúna explica o que aconteceu: “Durante a colonização inglesa na Nigéria, os missionários anglicanos estruturaram esse iorubá que é ensinado hoje em dia nos cursos. Eles fizeram dicionários, gramáticas e a escrita iorubá, que não existia”. Trata-se de uma adaptação, reunindo elementos de vários dialetos falados na Nigéria e incorporando também uma influência da língua inglesa, principalmente na criação de palavras que não existiam em iorubá.

Fale Conosco