Modernidade ou tradição?

“No tempo antigo não era assim”. Essa frase hora e meia é repetida como um mantra nos candomblés, tanto nos recém abertos como naqueles de muito tempo de estrada. Sempre com um saudosismo lacônico que deixa claro a dificuldade dos mais velhos, e dos mais novos, em lidar com as mudanças ocorridas na religião nestes últimos anos.

Mudar ou se reinventar nunca foi problema para o candomblé, uma religião que forçadamente precisou se adaptar  a qualquer circunstancia para sobreviver. A questão principal, no meu entendimento, está muito mais nas mudanças ocorridas fora do candomblé e que vem forçando reformulações de padrões e pensamentos arraigados em nossas Casas de Axé.

As portas de nossas Casas precisam mudar seus cadeados.

Há muito que precisa ser dito e discutido  hoje em dia nos terreiros. Diferentemente de alguns anos atrás, hoje as perguntas estão presentes no dia a dia das Casas de Axé deixando muito claro que as relações mudaram e que as hierarquias, aparentemente, mudaram também.

Mas algumas coisas chamam mais a atenção nestas perguntas e nesta aparente falta de hierarquia. Se de um lado é fato que há o despreparo de Zeladores para lidar com esse turbilhão de perguntas e questões novas de forma positiva e não impositiva. No outro extremo, o que  mais impressiona é justamente o teor destas novas questões que  tem sido trazidas para debates nas Casas de Axé. Assim como também impressiona  a forma como estas questões são colocadas no dia a dia das Casas. Muitas vezes de forma  nada educada, quase como a exigir respostas às suas dúvidas no imediatismo de um clique ou uma consulta ao google.

Ao longo desses anos de trabalho intenso principalmente na internet, desde 2008, primeiro no blog ocandomblé e agora aqui no blog.ori.net, além do programa Ori. Tenho me perguntado se toda essa vasta fonte de informações disponível, e de fácil acesso,  tem trazido de fato benefícios a nossa religião ou se tem criado fantasias,  dúvidas e até desinformação na nossa comunidade.

Nessa busca “pela verdade da religião” as pessoas estão recorrendo a todo tipo de leitura, a tudo e a qualquer um que se proponha lhes fornecer qualquer informação. Em geral o Dr Google tem se transformado numa “fonte inesgotável de sabedoria virtual”. Assuntos antes tratados com seus mais velhos, hoje são pesquisados na net. Está tudo lá, desde como tratar de uma gripe ou de como preparar o seu bife acebolado, até como se faz/inicia seja lá o orixá que for,   com requintes de detalhes sobre como se faz qualidade por qualidade.

Esta busca solitária e desenfreada por informação é reflexo dos dias atuais, onde me parece haver uma certa desilusão ou descrença generalizada nas instituições e pessoas? Ou é falta de competência das Casas de Axé em responder as dúvidas dos iniciados?

Neste embate, o abrigo do mundo virtual pode fornecer o espaço ideal para a formação de uma verdadeira colcha de retalhos de informações, das mais variadas cores, texturas e tamanhos, desde que satisfaçam e sejam de fácil entendimento e assimilação àquele leitor/buscador de informações rasas.

Mas se esta busca pode de alguma forma  justificar a criação de suas fantasias religiosas de um mundo perfeito, o dele. Onde de preferência não haja discussões mais profundas ou rebatimento de suas “teorias”, o  mundo virtual (fantasia) é perfeito.

Neste modelo de mundo religioso perfeito baseado no Google, muitos “buscadores” incluem várias soluções modernas de ritos mais “evoluídos”, como por exemplo, o não-sacrifício animal. Outros “buscadores” impõem a este mundo perfeito a eliminação das “barreiras hierárquicas” que,segundo suas pesquisas,  bloqueiam o conhecimento a que eles tem o direito  e férrea certeza de o merecem, pelo simples mérito de existirem nas Casas de Axé.

Esta é uma lógica de aprendizado em nada comparável aquela que os mais velhos, e de fato sábios, por vezes nos chamam atenção para perceber. Trata-se d a grandeza e a beleza do tempo. O verdadeiro senhor do conhecimento. Só o tempo, com seus  joelhos calejado pelo chão e a cabeça baixa aguardando a hora e o momento em que as perguntas seriam respondidas,  pode nos proporcionar um conhecimento sólido de fato.

No tempo antigo a maioria das respostas vinham em sussurros inaudíveis aos ouvidos desatentos, mas de certo vinham para todos os que ali estavam para “ouvir”. Não vinham em sons de teclado e letras numa tela fria. Havia, e há, o emí, que só conhece quem tem tempo para respirar o candomblé.

Mas para falar dessas buscas pela  informação e do conseqüente aprendizado baseado em múltiplas fontes, o que geralmente causa conflitos de interpretação, é preciso falar um pouco do “adequado comportamento social religioso”. Hierarquia e educação de Axé.

Hoje, talvez,  devido à fragmentação das famílias, ou aos novos modelos de família, as hierarquias são cada vez mais difíceis de serem aceitas e entendidas como algo positivo e necessário. Ela quase sempre é vista como  a imposição de normas velhas e caducas por velho e caducos que devem urgentemente  ser derrubadas ou abolidas em favor de um mundo novo, moderno e mais  justo e sem fronteiras.

O problema complexo desta equação é conciliar  o mundo virtual na internet com a realidade do candomblé.

Porém o discurso de quebrar barreiras sociais e hierárquicas, em grande escala, me parece ter um alvo claro e certeiro, as egbé das Casas de Axé. Um certo inconformismo em aceitar aquilo que lhes parece uma organização familiar. Porém,  este sentimento é dicotômico, posto que ao mesmo tempo em que estes indivíduos quererem fazer parte de uma família de Axé, eles a rejeitam enquanto instituição mantenedora da religião, da própria egbé.

A dicotomia fica mais evidente ao olharmos atentamente o cotidiano das suas vidas reais, a hierarquia existe e geralmente aqueles que a criticam são aqueles que se utilizam dela em seu favor, seja na sua família ou círculo social.  Então me pergunto. A hierarquia e as normas sociais são uma boa coisa somente fora dos muros das  Casas de Axé?

Em contra ponto temos os zeladores que vêem na hierarquização e disciplinarização das relações sociais da egbé a única forma de controle da sua comunidade religiosa.

Não estou lembrado onde ou de quem eu ouvi uma crítica severa sobre a frase:  “O que o filho faz do portão para fora não me interessa”. Mas me recordo que a pessoa que criticava esta frase me disse (ou eu li) que “este comportamento dos zeladores é um grande equívoco e um desserviço a nossa comunidade religiosa, afinal, o papel do zelador é cuidar de filhos, dentro ou fora da Casa de Axé”.

E neste contexto eu creio que seja papel do zelador informar o melhor possível sua comunidade para que seus filhos busquem no seu conhecimento (e da comunidade) as respostas para suas dúvidas e que se espelhem nos seus exemplos para aprender sobre regras de comportamento social e religioso (hierarquia).

A egbé é um organismo vivo, e muito complexo, que precisa de cuidados e ajustes constantes. Que o Zelador seja então como um jardineiro que apara hastes e flores, e quando necessário poda alguns ramos, reorganiza o jardim, coloca esteios para dar direção e suporte a nova árvore, mas que principalmente forneça um bom solo (base) parz que nele seus filhos possam plantar suas sementes. Mas o jardineiro deve deixá-las crescer em busca do seu próprio sol.

Axé, Tomeje.

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