A Cidade de Ifé

Ifé

O início:

A formação de ifé, segundo alberto da costa e silva (“a enxada e a lança”, ed.nova fronteira, 3ª edição, 2006), deu-se em função de populações que migraram do alto do nilo. Outras versões, no entanto, contam que os ifés descendem dos banis canaã da tribo nimrod do iraque, que expulsos, atravessaram o egito e a etiópia até chegarem ao sudoeste da atual nigéria.

Conforme teoria de albert paul dahoui (“o cajado do camaleão”, ed. Corifeu, 1ª edição, 2006), um grupo de aksumitas, meroítas e nobas liderados por olunwi, fugidos dos exércitos judeus, migrou para o sudoeste africano, vindo se instalar em okeorá. Okeorá era governada pelo rei (oba) owerê. Este carregava o título de obatalá, pois era descendente do patriarca adjalá (o 1º obatalá – rei do pano branco).

Okeorá era, a esta altura, uma cidade decadente, guardando a remota lembrança do seu apogeu no comércio dos produtos da forja de ferro, nos idos de 450 ac.

Olunwi prestou reverência ao rei, jurou-lhe obediência e presenteou-lhe com bens, gado e outras riquezas, selando assim seu pacto.

Anos se passaram até que okeorá entrou em colapso devido à seca. Com isso, olunwi e obatalá resolveram levar seu povo em busca de uma nova terra.

Subiram do sudoeste em direção ao sul. Após longa peregrinação, travessias e perigos, resolveram se estabelecer em um local aprazível, em formato de vale, circundado por belos morros, revestidos das florestas equatoriais, de onde brotava água em abundância, justamente por quedar-se na confluência dos rios níger e benué. Era também um local estratégico, pois não ficava na rota das lutas tribais, nem era próximo demais dos belicosos igbôs, estes mais a leste do níger.

Depois de tantas dificuldades, obatalá teria escolhido o nome da terra onde ergueriam sua nova morada: ilê nfé (a morada permanente), donde veio a contração: ilê ifé, ou simplesmente ifé.

Com a morte de owerê, olunwi foi escolhido pelo conselho para sucedê-lo no comando de ifé, mas não aceitou o título de obatalá, sendo apenas conhecido como oni (dono).

Em razão da saga pela busca da nova terra, ifé ganhou a aura de “terra prometida”, “cidade sagrada”. E assim foi perpetuada sua fama.

Olunwi, com o passar dos anos, mostrou-se um rei sábio e generoso. Evitou guerras, desenvolveu ifé e a fez crescer a custa de inúmeros acordos de paz que incorporavam aldeias e tribos, além de ajustes comerciais que deram pujança à cidade, fazendo-a prosperar. Por tudo isso, o oni de ifé passou a ser respeitosamente chamado de odudua (a cabaça da vida, de onde se desenvolve a existência e o destino).

Na versão de costa e silva, ifé significaria “…o que é vasto, o que se alarga.”

Ifé seria habitada desde o século vi, conforme conclusão de arqueólogos, mediante testes feitos com radiocarbono em materiais de escavações do local.

O comércio:

Segundo robin horton, a posição geográfica de ifé teria favorecido seu desenvolvimento. O reino de ifé torna-se um importante entreposto dos produtos da savana, da floresta e do litoral, face à sua privilegiada logística.

Além da indústria do ferro, a de contas de pedra e de vidro, constituíam fáceis artigos de exportação. Era igualmente forte a comercialização de inhames, peixe seco, sal, dendê, obis (noz de cola), pimentas, gomas, madeiras, ouro, marfim e objetos de arte em ouro, cobre, terracota e bronze, principalmente. Sendo certo que a venda de escravos também rendia grandes lucros, talvez o comércio mais rentável.

Vale dizer que no centro de ifé, desde sua construção, estrategicamente olunwi reservou espaço e fez erguer um grande mercado, a exemplo de sua experiência e de sua origem aksumita.

Era costume que todo o comércio rendesse taxas ao rei local. Assim, o mercado ativo e variado seria garantia de riqueza perene ao oba e ao seu povo.

Evidentemente que a influência cultural dos aksumitas e meroítas que migraram para okeorá e posteriormente fundaram ifé, foi determinante para o sucesso do planejamento da nova terra. Estes povos eram acostumados às grandes e belas cidades e ao comércio extremamente desenvolvido, como aksum, meroé, meca, adulis e aden.

Estrutura de poder:

Ifé foi a primeira cidade-estado a adotar a monarquia divina.

Vale dizer que a cultura africana tem como bases três pilares: a temporalidade, a oralidade e a ancestralidade, conforme márcio de jagun (“ori – a cabeça como divindade”, ed.ori, 1ª edição, 2011).

Feitos mágicos, místicos e religiosos, tornaram mitos diversos reis, rainhas e guerreiros africanos. Obatalá é um dos mais famosos destes exemplos.

Adjalá, o grande rei de okeorá, era famoso por suas curas milagrosas. Ao final da vida, alquebrado pela idade e pelo estado de saúde precário devido a torturas que teria sofrido no ataque de tribos inimigas, teve seu corpo todo deformado. Razão pela qual passou a usar um pano branco a lhe cobrir, quando atendia seus súditos doentes. Assim, passou a ser chamado de obalata (o rei do pano branco). Seu poder divino e sua bondade extrema, o fizeram ser reconhecido como um eborá, uma divindade, ainda em vida.

Em razão disto, todos os seus descendentes tiveram orgulho de ostentar sua alcunha de obatalá.

Por esses princípios, cada vilarejo dividia-se em várias linhagens, cujos chefes eram escolhidos pela idade e pelo parentesco com o grande ancestral.

Os mais velhos da tribo ficavam encarregados das funções religiosas, políticas e judiciárias, enquanto as questões sociais cabiam aos outros grupos mais jovens.

O líder (oni), representava a unidade do povoado. O vinculo social era o sangue. Tal princípio era comum entre os povos africanos. “um indivíduo pertencia a uma família – ebi, em iorubano – e só por causa dela, a um estado. Este era visto como uma versão ampliada da família, e o rei, como um pai.”, segundo costa e silva (a enxada e a lança, nova fronteira, 3ª ed., 2006, pág. 483).

Este pressuposto fazia com que laços de parentesco, ainda que distantes, garantissem a união de reinos, pelo vínculo da ancestralidade comum.

Tanto assim, que o hábito existente fazia os reis utilizarem o mesmo nome do ancestral como verdadeiro título a lhes assegurar a supremacia e o poder.

Os obatalás, por exemplo, desde a remota okeorá, já constituíam uma dinastia de cerca de mil anos. Assim, por toda aquela região, deixou vasta descendência. E como foi justamente owerê, o último obatalá direto, um dos fundadores de ifé, foi mais fácil aglutinar em torno da poderosa cidade muitos reinos administrados por parentes de linha sucessória vertical e colateral.

Em volta de ifé, existia uma enorme muralha concêntrica, com cerca de cinco metros de altura, por dois de largura, não só para proteger a cidade, como também para dar abrigo às populações agrícolas nos vilarejos periféricos, quando atacados.

Simbolicamente, todos ficavam sob a égide do grande oni, que os defenderia seja pelo aspecto pragmático militar, seja pelos poderes mágicos imateriais.

O místico e o poder:

As proezas dos grandes obas e onis, deu notoriedade a seus nomes e fez com que fossem geradas lendas que os imortalizaram.

Nomes como obatalá e odudua, são até hoje mencionados em lendas (itãns), através das quais, pelas metáforas ficcionais, contam a história de seus povos e civilizações.

Ifé teve tamanha importância na formação cultural e política do povo iorubá, que algumas lendas se referem à constituição desta cidade, como a própria criação do mundo.

De acordo com as lendas iorubás até hoje propaladas, ifé seria o umbigo do universo, a fonte de todas as coisas, o lugar de onde os homens se espalharam sobre a terra.

Existe um mito de que oludamaré (o deus supremo), encarregou obatalá de criar o mundo, e este se embebedou pelo caminho e não fez a tarefa ordenada. Odudua vendo isso, pede a oludamaré a missão que era de obatalá. Nisso odudua fica sendo o senhor da criação, enquanto a obatalá é conferida a tarefa posterior de criar os seres.

O itãn ainda fala que em certo momento, os filhos e os netos de odudua saíram terra afora para fundar outros reinos, como ketu, owo, ila, benim, popó, save, ijebu, ondo, ilexá, ode, ekiti, akure, ake, e ainda assumir alguns, como irê e oyó.

Para Robert s. Smith é possível que a lenda, neste ponto, expresse a história real.

Pierre verger e robert smith, consideram plausíveis estas possibilidades, posto que todos estes reinos passariam no futuro a compor o grande iorubo, consolidando a cultura iorubá, seus costumes, sua religiosidade e seu idioma.

Costa e silva, em sua obra, tenta separar o místico da realidade, fazendo observações de que odudua e obatalá, não vieram do céu e sim eram líderes de distintas comunidades.

O autor de a enxada e a lança (pág. 480), admite em suas observações, a migração de okeorá para ilê ifé: “e se veio do oriente, este ficaria bem próximo de ifé, em oke ora, o monte ora, a poucos quilômetros a nordeste daquela cidade. As lendas dizem que foi no monte ora que odudua e seus companheiros tiveram a primeira morada na terra. E dali saíram para dar combate aos ibôs ou ubôs, ou aborígenes, que seriam semelhantes à gente de odudua e dela falariam a mesma língua. Certas tradições asseguram, aliás, que os líderes dos ubôs, como obatalá e oreluere, chegaram a ifé com odudua.”

Embora já existisse tal princípio, foi inegavelmente na gestão de odudua que se consolidou o regime da chefia centralizada e dinástica.

Ifé, por ter sido fundada por lendários reis como obatalá e odudua, e ainda por estar no centro de outros reinos administrados por descendentes destes, passou a ser uma referência religiosa de toda a região.

“tida como o centro espiritual dos iorubás, ifé talvez tenha, durante muito tempo, recebido tributo e homenagem de vários outros estados cujas dinastias reclamavam a descendência de odudua e mantinham possivelmente certa forma de vassalagem em relação ao oni.”, relata costa e silva (a enxada e a lança, nova fronteira, 3ª ed., 2006, pág. 483). E arremata o mesmo autor em sua obra: “…, ifé teria crescido de um santuário, concentrando-se no seu rei, ou oni, o templo e o palácio.”

Costa e silva chega a citar ifé como a “…roma dos iorubanos,…”

A arte ifé:

A arte ifé é dotada de beleza e qualidade equiparada às obras clássicas gregas e as renascentistas italianas. Seus artistas expressam com requinte de detalhes seus reis, deuses, animais e também o cotidiano dos habitantes, inclusive com destaque às expressões pessoais e faciais: pessoas saudáveis, com doenças, com espanto, etc. Tais peças, feitas de latão, cobre, terracota, barro e bronze, demonstram não apenas o domínio sobre o metal, mas a capacidade artística de seus autores.

As esculturas ifé são concisas, serenas, equilibradas e elaboradas de modo impecável.

Em paralelo, há que se destacar a arte ifé classificada como contemporânea, face ao seu estilo peculiar. Eram representações estilizadas de cabeças e feições humanas.

Como o curso da história da áfrica, pouco se sabe sobre o surgimento e o desaparecimento da arte ifé. Alguns historiadores preconceituosos chegam a atribuir a arte ifé a algum artista romano, a um renascentista italiano, ou português que teria aparecido por aquelas bandas, como se negros africanos não tivessem capacidade para tal.

Em mais uma lenda para justificar o desaparecimento total da arte ifé, conta-se que os artistas que conspiraram com alguns cortesãos para esconder a morte de um oni muito querido, fizeram uma escultura com a imagem do falecido rei e a colocaram no trono. O príncipe descobriu a farsa e mandou decapitar todos artistas. O autor até acredita na possibilidade desta história.

Outra versão antropológica propõe a hipótese de que os artistas foram mortos por inimigos que queriam pôr fim a ifé e à memória de seu povo. O que apenas seria possível evitando que os famosos escultores sobrevivessem e continuassem a perpetuar a história, a crença e o povo de ifé, através de sua arte.

Esta versão encontra eco em dados antropológicos compilados por albert p. Dahoui, que descreve os igbôs como principais inimigos dos ifés, sendo que os primeiros tinham a tradição de decapitar os inimigos.

Nas palavras de costa e silva na obra em análise (pág. 488): “pois nada se sabe ao certo sobre a arte ifé. Sobre quando começou e quando terminou. Por quem e para quem foi feita.”

O declínio:

Ifé entra em declínio manufatureiro e de entreposto mercantil, tarefas que passam a ser exercidas por oyó a partir do século xvi.

Curiosamente, como leciona albert p. Dahoui, em torno de 550 dc, a mesma oyó teria sido governada simultaneamente pelo oni de ifé: oranyan, neto de odudua e filho de abalaju, este posteriormente conhecido como ogun (verger, “notas sobre o culto aos orixás e voduns”, ed. Edusp, 2ª edição, 2000).

Se antes oyó garantiu a unidade política e os interesses econômicos do reino de ifé, fornecendo-lhe ferro e mão de obra, agora era o motivo principal de sua derrocada.

Com a chegada dos portugueses, o comércio com o sul teria novo impulso, graças às relações destes com as cidades do benim e de ijebu.

Com a decadência de ifé, até mesmo a supremacia do oni passou a ser abertamente contestada, face aos interesses político-econômicos de alguns obas de cidades vizinhas que ascendiam em importância.

Para justificar a não submissão destes líderes descontes ao rei de ifé, desenvolveram-se algumas tradições a dizer que os obas descontentes não eram filhos, nem descendentes diretos de odudua, mas de um escravo deste.

Estas teorias oportunistas não vingaram. Por assim ser, mesmo perdendo sua importância econômica, ifé manteve seu predomínio como urbe sagrada e centro político-cultural da região.

Até os dias de hoje, ilê ifé é a meca do culto aos orixás. O oni de ifé figura como principal liderança entre todos os reis do iorubo, sendo considerado o pai de todos eles.

Sobre alberto da costa e silva:

O autor de “a enxada e a lança”, é um diplomata brasileiro que esteve em missão por mais de quinze países do continente africano. Entre outros estados, costa e silva serviu como embaixador na nigéria e na república do benim.

Tamanha foi sua importância na aproximação entre o brasil e os países africanos, que costa e silva foi agraciado com o título de doutor honoris causa pela universidade obafemi awolowo, de ifé, na nigéria, considerada uma das mais importantes instituições acadêmicas daquele continente.

Por força de seu trabalho na áfrica, costa e silva teve acesso privilegiado a pesquisas e documentos históricos, antropológicos e arqueológicos capazes de nos descrever com requinte de detalhes os povos, as etnias e fatos antes desconhecidos acerca das técnicas agrícolas, pecuárias, mineralógicas, pesqueiras, militares e comerciais de diversas cidades africanas.

Também aspectos culturais, religiosos, artísticos, técnicas de navegação e idiomas, são cuidadosa e meticulosamente arrolados na “enxada e a lança”, fornecendo vasto material de estudos.

A jornada histórica da áfrica negra estudada por alberto da costa e silva, inicia-se na pré-história do continente africano e estende-se até o ano de 1500 dc.

Acredita-se extremamente penoso o trabalho de pesquisa do autor de “a enxada e a lança”, haja vista que são poucos os registros sobre o tema na própria áfrica, tendo em vista que a cultura ioruba é essencialmente ágrafa.

Neste aspecto relata márcio de jagun (in “ori – a cabeça como divindade”): “a tradição oral também é uma maneira filosófica de se transmitir conhecimento de forma dosada, no momento exato em que o interlocutor estiver maduro para conviver com o novo saber. Para a cultura ioruba, o que se sabe é diferente do que se vivencia. A oralidade, portanto, não é traço de primitivismo, como alguns pesquisadores precipitados de tônica judaico-cristã pensaram. Antes pelo contrário, é uma visão ímpar de transmissão de conhecimento.”

Apesar destas peculiaridades, costa e silva consegue resgatar no berço africano, dados preciosos que estavam soterrados pelo tempo, pelo desinteresse e pelo preconceito, compilando informações que tornam “a enxada e a lança” uma obra antológica.

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