A música sacra de Xangô no Brasil parte 3

MITO, MEMÓRIA E HISTÓRIA

A música sacra de Xangô no Brasil

José Flávio Pessoa de Barros

 

A especificidade dos ritmos

Na África ocidental, as tradições orais possuem uma forte relação com o canto e a música instrumental, especialmente aquela produzida por tambores. Ambas, quando associadas, formam um imenso repertório, que fala da vida política e social das populações ali encontradas. As tradições orais são geralmente conservadas, transmitidas intergeracionalmente, isto é, de pai para filho. Existe, portanto, profissionais do canto e da música que, através do seu ofício, relatam tanto a vida cotidiana das sociedades decantadas, como a história dos reis.

Os poemas que distinguiam as famílias ou linhagens, e ainda a saga dos orixás, constituiram-se, também, em um repertório importante, na descrição das sociedades inseridas neste contexto sócio-cultural. Um dos estilos dessa arte de contar histórias, os orikis, fala de atributos, qualifica as realizações dos que são homenageados, reavivando a memória e ligando o passado ao presente. Algumas vezes demonstravam também, a insatisfação social, realçando aspectos negativos dos governantes, suas tiranias e a opressão que o poder muitas vezes utiliza.

Estes músicos tradicionais ou griots, eram de importância fundamental, pois ativavam a lembrança de um passado quase sempre heróico e ligado a figuras paradigmáticas dessas sociedades. Possuíam, outrora, um maior prestígio social, hoje reduzido, em função de atividades mais lucrativas. Poucos jovens estão dispostos, atualmente, a se dedicar ao aprendizado de longas citações e histórias, e ao deslocamento imperativo que o ofício impõe.

Os orikis são poemas, geralmente produzidos coletivamente, isto é, ao longo do tempo, por vários autores, quase sempre não identificados. São atributos, podendo tematizar tanto aspectos positivos como negativos dos que são louvados ou evocados. “Foi justamente graças à presença intensa e extensa do oriqui na vida iorubana – e graças, também, à extraordinária variedade dos objetos que o gênero submete a tratamento poético -, que Bólánlé Awé pôde tomá-lo como fonte de informação histórica. Awé se alista, assim, no movimento da chamada história oral. E vai por um caminho seguro. A historiografia inglesa, por exemplo, volta e meia recorre a baladas populares para as suas reconstruções e interpretações epocais. Também na África, as tradições orais vêm sendo mais e mais utilizadas nos esforços de reconstrução historiográfica. E a poesia (histórica, religiosa, etc.) compõe um dos principais campos da tradição oral africana” (Risério, 1992 : 38).

Estas recitações ou cânticos, muito expressivos e melodiosos, podem iluminar, de uma maneira muito especial, o cenário religioso afro-brasileiro, informando sobre a organização social, o sistema de crenças e a história oral derivada da diáspora negra. Autores como Berrague (1976 : 131) ressaltam a importância da música nesta reconstituição do passado, dando especial destaque à música religiosa analisada por este autor na Bahia. Do imenso repertório que avaliou nas casas de origem jêje-nagô, os cânticos de Xangô são por ele considerados como os mais tradicionais e próximos daqueles produzidos em seu local de origem, a África ocidental.

Quatro ritmos formam a base da maioria das produções musicais dedicadas a Xangô. São eles:

1 – Batá – Pequeno tambor iorubá, feito de madeira. Ramos (1934 : 162) informa que “na Bahia, há várias espécies de atabaques, desde os pequenos batás até os grandes ilus e batácotôs (tambores de guerra)”. É um tambor de duas membranas distendidas por cordas, que “é usado pendurado ao pescoço do tocador e batido dos dois lados” (Cacciatore, 1977 : 64). É um ritmo cadenciado, usado especialmente nos rituais de Xangô e executado sem o auxílio dos aquidavis ou baquetas, isto é, é percutido com as mãos. É acompanhado de cantigas, e pode ser apresentado como louvação a outros orixás. O termo é de origem iorubá, bàtá – significando tambor para o culto de Egum e Xangô. (Pessoa de Barros, 1999 : 66) Embora outros autores falem da presença desses tambores no caso brasileiro, Verger (1997 : 140) afirma que “os tambores bàtá não são conhecidos no Brasil, embora ainda o sejam em Cuba, mas os ritmos batidos para Xangô são os mesmos. São ritmos vivos e guerreiros, chamados tonibobé e alujá, e são acompanhados pelo ruído dos ‘xeres’, agitados em uníssono”.

2 – Alujá – Toque rápido com características guerreiras, dedicado a Xangô. Significa, em iorubá, àlujá, perfuração, orifício. Segundo alguns sacerdotes, “é o orifício ou buraco que Xangô abriu na terra, por ele entrando, deixando de ser rei e transformando-se em orixá “(10). Pode ser somente instrumental e, neste caso, ser uma peça musical louvatória. Ramos (1934 : 303) o relaciona a dança executada por Xangô. Geralmente, neste caso, o orixá, acompanhando o som produzido pelo run, conta gestualmente a sua saga de guerreiro, e seus atributos de dono dos trovões, capaz de lançar sobre a terra as pedras de raio edun-ara. Os gestos do dançarino acompanham a execução do alabê, e a cada batida mais forte corresponde um gesto largo e um passo firme do “Senhor dos raios”. Dançarino e músico encontram-se intimamente ligados na descrição da epopéia mítica. Pode ter um sentido invocatório das divindades semelhante, neste caso, ao adarrum, como um ritmo que propicia o transe (Pessoa de Barros, 1999 : 68). O alujá, geralmente, apresenta três andamentos diferentes durante sua execução. O primeiro momento, mais lento que os outros dois, corresponde aos passos da dança, em que o orixá percorre todo o espaço do barracão. A seguir, os atabaques aceleram gradualmente o ritmo, tornando mais vibrante os passos executados pelo dançarino. Finalmente, mais rápido ainda, a peça musical atinge o seu climax, quando Xangô, frente à orquestra dos atabaques, “brande orgulhosamente o seu ‘oxê’, e, assim que a cadência se acelera, ele faz o gesto de quem vai pegar num ‘labá’ (bolsa de couro) imaginário, as pedras de raio, e lançá-las sobre a terra” (Verger, 1997 : 140).

3 – Tonibobé – Etimologicamente é um termo iorubá que significa tó – justas; ni – reforço gramatical; bo – adorar; bè – suplicar, pedir; pedir e adorar com justiça. Seu andamento especial lembra o ritmo de um bolero, sendo algumas vezes esta semelhança lembrada de forma reservada e respeitosa como o “Bolero de Xangô”. (Pessoa de Barros, 1999 : 70) A dança executada por Xangô, neste ritmo, apresenta algumas singularidades. Os pés avançam devagar e os calcanhares marcam, com uma batida mais forte, os gestos que as mãos executam, à altura do rosto do dançarino. Os punhos fechados, com exceção dos indicadores, giram em torno de si mesmos, e repetidamente, lançam-se, ora a direita, ora a esquerda, e para cima, como quem lança algo. A cada gesto de mão, ergue-se um dos pés, de maneira cadenciada. A respeito dessa performance, diz-se: “Xangô está preparando os raios com os dedos e depois atira as pedras de raio para cima, que caem em todos os cantos.” É interessante notar que este ritmo é executado somente pelos instrumentos musicais, não sendo encontrado nenhum texto a ele associado.

4 – Kakaka-umbó ou Batá-coto – o primeiro termo, de origem iorubá, significa ka – enlaçar, envolver (a repetição é um reforço); nbó – retornar, em círculo; envolver em círculo. São gestos vigorosos, onde os punhos vão se cerrando progressivamente até que a mão fechada execute repetidas vezes um gesto semelhante ao da mão de pilão que esmaga. Quanto à segunda denominação, batá-coto, é o nome de um tambor de guerra, de origem iorubá. Foram destruídos durante o período conhecido como Revolta dos Malês, no século XIX. Segundo Carneiro (1937 : 110), sua importação foi proibida desde 1855 e sua execução significava prisão e, talvez, a morte. Este ritmo, com sua gestualidade específica, é realizado na dança de Xangô e de Oguiã. Julgamos ser uma representação guerreira. (Pessoa de Barros, 1999 : 70) O ritmo kakaka-umbó, cuja dança foi descrita acima, dramatiza a utilização do pilão, e está associada a estes dois orixás, de uma maneira muito especial. Oguiã executa esta dança guerreira, geralmente durante a cerimônia denominada “a festa do pilão”, onde são oferecidas bolas de inhame piladas e dedicadas a este orixá, considerado como o “rei da guerra”. O mesmo sentido e gesto aparece na dança de Xangô, que “destrói, com batidas violentas dos punhos, seus inimigos.”

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