A primeira vez que entrei em uma casa de axé

Texto de autoria de nossa querida leitora Maria Sales.

A primeira vez que entrei em uma casa de axé, ainda na condição de visitante, senti um frio na barriga, uma mistura de medo, ansiedade e curiosidade. Medo devido ao preconceito: crescer em uma sociedade cristã (apesar de laica) cria em nós uma boa dose de julgamentos e pré-conceitos contra religiões de matriz africana. Ansiedade porque o desconhecido me impressiona. Curiosidade porque finalmente conheceria a religião de parte de minha família. Na primeira batida dos atabaques, senti milhões de arrepios inexplicáveis em palavras.

Desde este momento não parei de pesquisar, não parei de perguntar. Algumas primas, que eram do axé há tempos, chegavam a se irritar com a minha petulância. A cada vez que eu as encontrava, sentava no sofá e pedia pra me explicarem coisas. Eu perguntava coisas e nem sabia o que estava perguntando. “Você é de Xangô, né prima? Me explica o que é Xangô?”, “O que é bori?”, “Mas o santo vem e come?”, “Por que você veste branco nas sextas?”, “E tem mesmo que sacrificar os bichinhos?” são algumas das perguntas que eu fazia, toda vez que as encontrava.

De lá para cá se passaram anos até que eu procurasse uma casa de axé novamente. Esse encontro entre mim e meu orixá se deu de maneira intuitiva e por meio de inúmeras coincidências que me levaram até a casa onde hoje estou na condição de abian.

A segunda vez que entrei em uma casa de axé, agora na condição de consulente, senti o mesmo frio na barriga, com medo, ansiedade e curiosidade, mas agora por outros motivos: fui para um jogo de búzios e não fazia idéia do que os orixás iriam me dizer através daquelas conchinhas.

Desde a segunda vez, não saí mais. Os arrepios, as sensações, a curiosidade (e, confesso, por vezes o medo) ainda me acompanham. Como é sabido, o candomblé é uma religião iniciática e gradual: cada dia na casa de axé é um novo aprendizado, é uma nova sensação, cada abraço de cada orixá é uma renovação de minha alma e espírito, sempre dentro daquilo que minha posição na hierarquia permite. Limpar o banheiro, varrer o chão, lavar a louça, ajudar no que posso é sempre muito gratificante. Aprender a ouvir, aprender a observar, aprender a respeitar. Principalmente aprender a observar. Mais importante do que perguntar é observar, é ver como se faz. A cada dia me sinto mais próxima de meu orixá, apesar de ser apenas uma abian.

Sinto este período como um namoro. Nele, tenho a oportunidade de conhecer meu orixá, de aprender sobre ele, suas lendas, de onde veio, suas cantigas. Ao mesmo tempo, tenho oportunidade de conhecer a casa, minha família de santo, suas raízes, seus costumes.

Por vezes me dá uma curiosidade imensa, uma vontade de saber o que ocorre dentro do roncó, de aprender coisas que ainda não estou preparada para aprender. Então rezo, peço a meu Pai para que me dê paciência e compreendo que um dia minha hora chegará. Não adianta querer adiantar, não adianta querer atrasar: cada coisa tem seu tempo e o tempo do orixá é diferente do nosso. Eu, que sou extremamente impaciente, estou aprendendo com meu orixá a ter paciência.

Além de uma experiência religiosa, costumo dizer que esta é um aprendizado cultural e social. A estrutura social dentro de uma casa de axé é diferente do resto do mundo. É um mundo a parte. Um refúgio da hostilidade e agitação do universo capitalista onde tempo é dinheiro e tudo é correria. No candomblé o tempo, pelo que percebi, é um item muito mais valioso do que dinheiro: o tempo é sabedoria e sabedoria não se compra, não se vende. Sabedoria se adquire com o tempo, que pertence ao orixá.

Agradeço a meu orixá todos os dias por ter me escolhido para ser sua filha, agradeço por entender o meu pedido de espera, agradeço por estar comigo sempre e não me abandonar ou ameaçar. Sei que um dia, quando o tempo dele vir de encontro com o meu, será a hora de me entregar completamente e virar efetivamente uma filha-de-santo, uma yawo.

Hoje novamente estou com frio na barriga, medo, ansiedade e curiosidade, assim como da primeira e da segunda vez que entrei em uma casa de axé. Medo de não dar conta, ansiedade de que chegue logo a hora e curiosidade do desconhecido. Hoje darei um passo que, apesar de pequeno, é importante dentro da minha caminhada religiosa e importantíssimo para mim, para meu ori.

Amanhã ainda serei uma abian, mas tenho certeza que algo em mim estará diferente. Amanhã, tenho certeza, estarei mais leve e bem alimentada.

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