Banquete dos orixás, parte 3.

Um texto para ser apreciado com calma. Com são as boas comidas.

Banquete dos orixás, parte 3.

Com quiabos bem escolhidos se faz o delicioso amalá, o alimento predileto do Xangô, um orixá muito poderoso que foi rei e marido de Iansã. Como informa Dona Nidinha: “Ele é feito do mesmo jeito que o caruru, com quiabo, dendê e camarão seco, mas leva carne de boi”. Num relato deixado por Mãe Aninha, primeira mãe-de-santo do Ilê Axé Opô Afonjá, ela define o amalá como um tipo de caruru com carne, acrescentando que existem o caruru de folhas (chamado em algumas casas de efó), o caruru de verduras, o caruru de cebolinha, o caruru de ervas africanas, o caruru de mostarda e outro com quiabos. Como o quiabo e o caruru também são associados aos Ibejis – orixás gêmeos – e a Iansã, muitos baianos sincréticos oferecem o mesmo prato a Santa Bárbara e a São Cosme e São Damião, correspondentes dos orixás no catolicismo.

Feijões de todos os tipos participam do banquete dos orixás: fradinho, preto, mulatinho. “Para Oxóssi, a gente bota o feijão de molho e depois torra. Fica parecendo amendoim”, diz Dona Nidinha. O feijão-preto agrada a Omolu e a Ogum. No Brasil, uma das comidas presentes nas homenagens a Ogum é a  feijoada. Dona Cici explica o motivo:

Contam que existiu um grande pai-de-santo chamado Procópio. Ele nasceu no Brasil, liberto, com pais africanos que eram escravos em Cachoeira. Ele morreu com quase 90 anos, em 1958. Seu Procópio tinha um grande candomblé num local chamado Baixão, onde tem hoje o Vale do Ogunjá, exatamente porque era o nome do santo dele. Seu Procópio era de Ogunjá e as pessoas de Ogum têm muito da personalidade desse orixá, considerado o orixá mais perigoso de todos, o orixá mais radical que tem. Então se conta que, um dia, ele se aborreceu com um filho-de-santo de forma injusta e expulsou o filho da roça. Passados uns dias, ele fez uma festa e então Ogum veio e deixou o seguinte recado: “Que Procópio era filho dele, mas não era dono dos outros filhos dele”. Ou seja, que Procópio era o pai-de-santo, que fazia o orixá dos filhos-de-santo, mas os filhos-de-santo pertenciam a Ogum e que Seu Procópio tinha sido injusto com o filho dele. E mandou que ele fizesse uma comida e chamasse o filho de volta à casa. Que Seu Procópio não esquecesse do recado, que ele ia ficar esperando.
Quando Seu Procópio acordou do transe, os filhos-de-santo deram o recado: “Meu pai, nosso pai Ogum veio em sua cabeça e disse que o senhor tem que fazer uma comida de confraternização e que o senhor tem que chamar de volta o nosso irmão que o senhor mandou pra fora do axé”. Seu Procópio ficou muito assustado, porque ele não queria voltar atrás, mas como ele temia muito o santo dele, então pensou e disse: “Eu vou fazer essa feijoada e vocês chamem ele”. Então contam que Seu Procópio fez a feijoada com tudo que você possa imaginar, armou uma grande esteira, chamou o filho-de-santo, como Ogum mandou, e botou o filho sentado junto dele. Seu Procópio foi fazendo os pratos de cada um dos filhos, mas ninguém comia, esperando ele dar o sinal. Então, ele fez todos os pratos dos filhos e fez o dele. Só que, quando tocou na comida para comer, Seu Procópio virou de santo e todos os filhos-de-santo viraram de santo também. Até hoje, em muitos terreiros acontece essa grande feijoada, que é colocada numa esteira, em frente à casa de Ogum ou ao lado e todo mundo do axé participa, em memória desse recado que Ogum mandou.

O feijão fradinho está presente em alimentos para Iansã, Oxum e Oxalá. A Iansã é oferecido o alimento mais quente de todos, o acará, a massa de feijão fradinho moído, temperado com cebola, sal e frito no dendê. O azeite precisa estar fervendo e os bolinhos estão prontos quando ficam vermelhos como fogo. Acarajé significa “comer acará ou comer fogo”, provavelmente numa alusão a uma cerimônia que Pierre Verger observou na África, envolvendo devotos dos deuses do fogo – Iansã e Xangô. No ajeré, os iniciados devem comer (verbo jé) acarás, que são bolas de algodão embebidas em azeite de dendê em combustão, para provar a veracidade do orixá, do transe.

A comida mais freqüentemente oferecida a Oxum é o omolucum – o feijão-fradinho temperado com camarão, cebola, sal e dendê -, facilmente encontrado em qualquer mesa baiana. Mas quando é oferecido à deusa das águas doces não podem faltar os ovos cozidos sobre o prato, símbolo da fertilidade. O abará, preparado de forma semelhante ao acará, mas cozido no vapor, enrolado numa folha de bananeira, também é um alimento de Oxum, mas servido puro, sem recheios. Para quem duvida que, desta forma, ele seja saboroso, um bom exemplo está no abará vendido por membros de uma mesma família de Castelo Branco, há mais de 20 anos, no centro histórico de Salvador, próximo ao Taboão. Servidos ao modo tradicional, com pimenta e camarões na própria massa, esses abarás são considerados por muita gente os melhores da cidade. O feijão-fradinho está presente ainda no ecuru de Oxalá, uma espécie de farofa feita com fradinho e cebola e, em algumas casas, com mel, sal e dendê.

Milho branco para o ebô de Oxalá, cozido sem sal e sem açúcar. Milho para o ebô de Iemanjá, um tipo de canjica refogada com cebola e camarão. A deusa das águas do mar gosta também do milho branco e do milho vermelho, “quebradinho, aquele que usa pra fazer lelê”, diz Dona Nidinha. O ebô de Oxalá participa da cerimônia Águas de Oxalá, realizada em janeiro, quando, em alguns terreiros, é jogado sobre os participantes, num ato de purificação. Depois das danças, o resto do alimento é distribuído para que os presentes possam comê-lo ou passá-lo sobre o corpo. Milho cozido e todo coberto com tirinhas de coco é o axoxô, que alguns servem a Ogum e outros, a Oxóssi. Milho torrado também na farofa dourada de Oxum, descreve Dona Cici:

Torra-se milho, sem abrir em flor. No pilão, se soca o milho – todas as filhas de Oxum têm que socar – até virar uma farinha que se tempera com o que eu não posso dizer, porque é segredo. Essa farinha ganha o nome de ádo. Depois se coloca em pequenos cartuchos de papel colorido e põe à parte. Colocam pequenos pratos dessa farinha úmida junto do orixá e pode durar um ano sem apodrecer, por isso é segredo o tempero.

E, claro, é de milho o doburu de Obaluaiê: a pipoca. Obaluaê, Omolu, Xapanã. Geralmente descrito como filho de Nanã e irmão de Oxumaré, Obaluaê é o deus da varíola e das doenças contagiosas, que dança inteiramente coberto de palha da costa, que encobrem as suas feridas. “Obá é rei. Olu é dono, senhor, proprietário. Ayiê é mundo. Obaluaê é o dono do mundo dos vivos, da terra. Para os cubanos, ele é Babaluaê ou Babalu”, explica Ieda Machado, adepta da religião. Segundo ela, as denominações e histórias sobre o orixá variam de acordo com a região da África de onde vieram. “Obaluaê é um orixá da terra porque foi criado no mato, por ser muito doente. Ele teve várias doenças de pele – bexiga, varíola, catapora – e foi tratado por sua mãe, Nanã, no mato, envolvido na palha da bananeira seca para que sarassem as suas chagas”, conta o pai-de-santo Alberto. Nas mãos, o orixá leva um xaxará – um espanador feito de nervuras de folhas de palma – e sobre o corpo, pequenas cabaças com os seus remédios.

Quem é adepto do candomblé aprende com Obaluaê que a saúde começa com a alimentação. “O Olubajé é feito pra reverenciar o orixá, para que ele tenha misericórdia de nós, porque sem saúde não adianta ter nada, é a coisa primordial para o ser humano, mas também tem o sentido de mostrar para as pessoas a importância da alimentação. Sem alimento, não somos nada”, explica Babá Silvanilton. Na cerimônia, são oferecidos muitos alimentos, como comidas à base de milho e feijão.

Outro alimento feito com milho é o acaçá. A receita veio da religião dos orixás e, depois de ter sido vendido nas ruas de Salvador com tanta freqüência como hoje encontramos o acarajé, ele novamente quase só é feito nas casas religiosas ou por adeptos. Quando vai acompanhar as comidas dos orixás, usa-se apenas o milho branco ralado e água. Depois da massa estar bem cozida, é preciso muita habilidade para colocar as porções na folha da bananeira e dobrá-la da forma certa, para que o bolinho fique com o gracioso formato de um balãozinho. Mas, quando é vendido nas ruas, acrescenta-se açúcar, leite de coco, erva doce, cravo e água de flor, explica Dona Nidinha. Em Salvador, um dos mais antigos vendedores de acaçá ainda na ativa é Antônio, que há mais de 30 anos percorre as ruas do Santo Antônio e do Carmo empurrando um carrinho enquanto chama a freguesia: “Acaçá, acaçá de leite”, contam os moradores do bairro. Hoje, ele já não aparece com tanta freqüência, por isso, quem conseguir encontrá-lo e puder degustar um dos seus famosos acaçás, saiba que, em todos os sentidos, estará provando um manjar dos deuses.

 

PRODUÇÃO

Pesquisa bibliográfica, entrevistas e elaboração dos textos:  Agnes Mariano / agnesmariano@gmail.com

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