COMIDA DE SANTO: RAZÃO, TRADIÇÃO E FUNDAMENTOS:

COMIDA DE SANTO: RAZÃO, TRADIÇÃO E FUNDAMENTOS:

As comidas litúrgicas no candomblé têm fundamental importância na tradição e na manutenção dos costumes religiosos. As comidas também funcionam como formas de integração entre homens e deuses, e entre os homens e seus iguais, servindo para o agrupamento das comunidades.

O ato de “repartir o pão” é mais do que um simples gesto, mas um símbolo que extrapola as crenças. Praticamente em todas as Religiões conhecidas no mundo, sejam elas extintas ou atuais, o ato de comer se confunde com os ritos. Para nós brasileiros, a comparação com o catolicismo é bem mais fácil. Assim, podemos ver que a ceia natalina, a ceia de Páscoa, a comunhão da hóstia, a ceia de Jesus com seus Apóstolos, são fortes tradições que relacionam o ato de comer à liturgia religiosa.

Mesmo à parte das religiões, temos que os deliciosos almoços em família, as refeições com os amigos, os jantares de conquista, os almoços de negócios, sempre estão unindo os mais diversos interesses à mesa. Em todos estes exemplos, o gesto de “comer junto” sempre tem a conotação de agregar, facilitar, unir, atingir um objetivo, seja ele de lazer, amor, negócios ou mera distração.

Segundo o escritor Raul Lody, “Alimentar-se implica em um ato biológico e também cultural.”

Para o Candomblé, como Religião e Cultura, a comida representa tudo isto e mais ainda: o elo de ligação entre os seres e seus deuses.

Devido a isso, a tradição yorubá nos ofertou inúmeros quitutes, hoje inteiramente agregados à culinária nacional, como o acarajé, o carurú, o angú, a farofa, e tantos outros.

A necessidade de comer se integra perfeitamente à necessidade de sobreviver. Sobreviver com os deuses. Comer com eles.

Na alimentação de caráter votivo, come o corpo e come o espírito. Alimenta-se a alma com axé.

A comida litúrgica aproxima não só os homens dos deuses, mas também todos com a natureza, seus mistérios, seus tesouros, suas dádivas aos seres vivos e sua energia aos seres intangíveis.

As comidas votivas têm o poder de acionar o axé.

Nos Terreiros tudo come: os devotos, os deuses, a cumeeira, os atabaques, os fios de contas, a cabeça… Nessa abrangente concepção, todos os elementos são então integrados, valorados, deificados, prestigiados, interligados naquela comunidade.

Não há festa em Candomblés sem que haja comida. Comer é então uma grande celebração. Nada se perde na cozinha de santo. Até os animais sacrificados têm todas as suas partes aproveitadas, seja para o axé, seja para o ixé, para os Orixás, para o povo comer, couro para os atabaques, etc.

A responsável pela cozinha nas Casas de Santo, é uma importante integrante da Comunidade. Recebe o cargo de Iyabassê (Iyá Agbà sé – “A Senhora Respeitável que Cozinha”). É ela a incumbida de preparar os quitutes ao agrado dos deuses, bem como de alimentar os membros da comunidade, sempre respeitando os ewós, as predileções e a história de cada divindade.

As cozinhas de santo são verdadeiros santuários, devendo render-se a inúmeros preceitos antes, durante e depois da preparação dos alimentos. Os utensílios devem ser próprios, não se misturando com os da cozinha do povo.

Alguidares, tijelas e pratos de louça, pratos najé, quartinhas, talhas, gamelas, pilões, colheres de pau, tachos de cobre, pedras de ralar, moinhos, travessas de cerâmica, bacias de ágate, são as ferramentas desta cozinha tão cheia de mistérios e atrativos.

Só que a Religião é viva, moldando-se e remodelando-se ao espaço e ao tempo.

Existem umas cozinhas litúrgicas mais, outras menos tradicionais sob o ponto de vista dos ingredientes e dos utensílios utilizados.

A falta de tempo e o elevado custo das coisas de santo, também contribuíram para a modernização e simplificação de alguns ritos alimentares. Quase já nem mais se sabe preparar acarajé amolecendo e moendo o feijão-fradinho. Hoje é mais comum a farinha de acarajé comprada pronta.

O refogado de camarão sêco socado com cebola ralada, foi agora agilizado com a utilização do mixer.

O ejá de Yemanjá e o Inhame de Ogun, já não são mais assados na lenha, mas no forno a gás.

Não somos contrários a modernidade, até porque, como dissemos, esses elementos são hoje fundamentais à nossa falta de tempo e até mesmo a falta de locais apropriados para a preparação daquelas  comidas.

O que não é admissível é ferir a essência do preceito litúrgico, desrespeitar o fundamento religioso. O que não dá, é aceitar o deburu no micro ondas, porque fere o fundamento do seu preparo, por exemplo.

Como eu brinco sempre, com todo respeito a EXU, o primeiro Orixá a ser agradado, é o “Bom senso”.

Márcio de Jagun

Babalorixá, escritor, professor universitário, advogado e apresentador do Programa Ori (ori@ori.net.br)

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