DE IYÁ – MI – AGBÁ E DANÇA CONTEMPORÂNEA

DE IYÁ – MI – AGBÁ E DANÇA CONTEMPORÂNEA

Denise Zenicola é Doutora em Teatro pela UNIRIO, pesquisadora do   NEPAA (Núcleo de Estudos das Performances Afro-Ameríndias), professora de   Técnicas Corporais na Universidade Estácio de Sá, preparadora corporal de   teatro, Coreógrafa, Diretora e Bailarina.
Dança/Comunicação/Antropologia

Se por um lado, a Globalização transforma o mundo em uma aldeia, ou pelos menos pretende, por outro, cria mecanismos naturais e interessantes práticas de resgate e manutenção do saber local.

Estes saberes também chamados bens culturais, de natureza imaterial, sobrevivem graças à resistência de grupos sociais que preservam sua identidade cultural, na prática de costumes e cultos de suas crenças e valores.

Tal resistência sobreviveu à evolução industrial, resiste ao processo mundializante ou globalizante e ao poder com que atua a indústria cultural nos meios de comunicação de massa. Especialidades borbulham no mundo apresentando singulares formas de ser e estar no mundo que agenciam buscando comunicação, na necessidade de pensar e discutir diante dessa nova era social que se apresenta.

Por maior que seja a exposição, informação e invasão, que vivemos e ou assistimos, por outro lado, reapropriações e resgates históricos têm sido promovidos como conseqüência e em antagonia a essa hiper exposição. Neste sentido, práticas semelhantes acontecem no campo da dança, no Brasil.

Segundo Jean Baudrilard, “vive-se o estágio da pós-orgia, o corpo foi metáfora da alma e depois do sexo e hoje é a metáfora de coisa nenhuma, é o lugar da metástase” e, sobre isso, falaremos mais tarde (1992: 53).

Os elementos da cultura popular vêm sendo resgatados no Brasil, de forma tímida ainda, porém não menos eficiente. Na verdade sabemos que o primeiro e mais significativo passo dado neste sentido foi o de Mario de Andrade, quando nos anos 30 circulou pelo Brasil, captando em imagens, o que veio nomear como “Danças Dramáticas”. Seu objetivo foi mais um registro de danças, mas abriu um campo para se pensar os elementos da cultura popular brasileira. Nesta época, pós – movimento de 22, as culturas nacionais são pensadas ainda pelo viés do exótico e folclórico e as danças traduzidas para o palco trazem fortes traços desses referentes tradicionais de identidade.

No momento atual, em que há a necessidade de se assumir a interculturalidade e quando também as teorias antropológicas de “contato cultural” deixam de ser o foco, por pensar em parâmetros meramente antagônicos entre os grupos, o olhar muda. Deve-se pensar a relação entre culturas como diverso cultural e não o diferente. Logo, torna-se também emergente pensar em processos de aproximação inter áreas afins, como técnica de descoberta criativa. É a hibridização na arte, citada por Mcluhan(1) , onde “a importância expressiva dos meios híbridos intensificam a mensagem poética” (2004: 129).

Se, na Pré -História, a dança é o todo, na Antiguidade é rito e é mito, na Pré-Modernidade é o culto à fantasia e aos sonhos e na Modernidade é revelação de emoções e sentimentos de uma época marcada pela angústia e pela dor, a dança na pós-modernidade vive o happening , a body-art, a performance, dialoga com o teatro, circo, vídeo, mixa-se com várias linguagens, expandindo suas fronteiras.

Neste sentido, tenho iniciada uma pesquisa/performance onde trabalho dança contemporânea com mitos Iorubá, dialogando com bens simbólicos, combinando-os, onde o vital é a não alteração da essencialidade do ritual. Neste estudo proponho uma prática de pesquisa de linguagens, em que quatro bailarinas criam e utilizam seus próprios códigos imbricados com as danças rituais. Aqui nos interessa olhar o contexto cultural em que se produz nosso híbrido estético, permeado por cruzamento de linguagens, interdisciplinaridade e pluralismos, como poética do movimento.

Na pesquisa performance/dança aproximamos Dança Contemporânea com o princípio da grande mãe designada Iyá Mi Agbá(2) , “minha mãe”, o poder feminino, as donas de poderoso Axé, segundo Verger (1994: 17). Entre os Iorubás este poder é tão absoluto que, devido à sua grandiosidade, é desdobrado em diversas divindades femininas. Trabalhamos com 4 padrões do feminino, as Iabás que são Orixás femininos e guerreiros na cultura Afro brasileira, e que nesta ordem se apresentam: Iemanjá a protetora e maternal, relacionada ao poder genitor mais do que à gestação; Oxum a mãe ancestral suprema, sensual e envolvente, possui domínio sobre a fertilidade humana; Iansã a energética e inconstante, zelosa com seus filhos e que utiliza violência para protegê-los; Obá a que mesmo machucada sabe lutar.

Para tal, a performance apresenta quatro performers, em momentos do feminino; mulheres de 20, 30, e 40 anos apresentam-se em trajes sumários expondo a beleza da feminilidade. Neste estudo iniciado, o corpo é como uma rede que tudo atravessa e que por tudo é atravessada. É através dele que a bailarina vivencia o rito e culturalmente evolui sua dança. É no corpo que a técnica da dança dela se manifesta e se mistura com os fundamentos da Iabá performada. A partir desta fusão cria-se a performance, e ele próprio, o corpo, torna-se objeto de evolução técnica e cultural.

A performance desenvolvida representa o jogo de poder que luta pelo controle da comunidade e podem manipular através da magia, o nascimento e a morte; representa o próprio poder criador. É a ordem natural, o ciclo de vida e morte que é a síntese do poder feminino; cumpre a função de moderador social, visando também, apaziguar e reverenciar as Mães Ancestrais para assegurar o equilíbrio do mundo. Estão representadas ainda na performance aspectos de crueldade, vingança, ira, controle e perseguição, aparecem como sinais do poder das Iyami, ao mesmo tempo em que doação, fecundação, proteção, dão a imagem da maternidade, numa visão carinhosa e vital.

Nos encontros que se seguem estamos aprofundando conceitos, lendas, permissões e quizilas destes Orixás e, nestas discussões a pergunta é – “Que tipo de dança queremos que nasça desta performance? Como olhar para a nossa cultura dentro deste processo de globalização?”

Ora, sabemos que Axé ou ÀSÉ, significa em Iorubá grande porta e é energia pura. Esta energia deve estar presente, o tempo todo. Logo, percebemos a impossibilidade de querer ser literalmente um ritual.

O limite está delimitando-se. O movimento por isso, tem que ser, ao invés de parecer. A performance potencializou as cores: azul, amarelo, terra e vermelho; os ritmos e princípios de ritualidade dos Orixás do feminino.

Aboliu-se as insígnias dos Orixás e procura-se não dançar a dança do Orixá, para ser a dança da: a maternidade, fertilidade, o viço e luta do feminino.

O que observamos é que a performance apresenta um campo de força intermediário entre os padrões de dança contemporânea e a dança praticada nos terreiros. Para tal, trabalhou em profusão com um estado de intercomunicação essencial do movimento. Não podemos decompor o movimento em suas menores unidades capazes de existir independentemente, movimentos não são “blocos de construção básicos”, ou seja, movimentos isolados são abstrações e suas propriedades só podem ser definidas e observadas através de sua interação com outros movimentos.

O corpo performa como “um complexo tecido (tramas) de ações, no qual diferentes tipos de movimento se alternam ou se sobrepõe, ou se combinam determinando, assim, a textura do todo, de forma infinitamente complexa e única” (Zenicola, 2005: 258).

O que se observa, no entanto, é que nem todos os movimentos, ao serem considerados manifestação de uma unidade básica, são iguais. Há uma individualidade dos movimentos, ao mesmo tempo, com marcantes diferenças e contrastes dentro da unidade a que tudo alcança; o ponto de vista do absoluto.

Logo, trabalhamos com a estética afro-brasileira: “os pés enraizados, joelhos quase sempre flexionados, o sentido ritualizado, aliás comum às duas formas de dançar, o quadril solto abrindo para articulações variadas e o principal, o movimento que nasce do tronco e expande para todo o corpo”. (Zenicola, 2005: 129).

Estamos falando de Dança Contemporânea ou Dança de Orixá?

Quantas semelhanças, quando os campos de saberes se abrem e criam um terceiro campo, entre um e outro.

As possibilidades de incorporação de elementos da cultura popular são infinitas, afinal, em nossos corpos estão inscrito as regras, as normas e os valores. Se a “dança é pensamento do corpo” (Greiner, 2002: 32) ou “um lugar da metástase” (Baudrilard, 1992: 428) a cultura popular é a síntese que vem sendo elaborada há muito. Com o maior interesse na cultura popular e brasileira, acredito ser a hora de mergulhar fundo em nossas expressões simbólicas, afinal, somos sujeito-histórico cultural.
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A discussão/prática é iniciada, os limites desta relação cultura popular – dança contemporânea, não os vejo, se existem vamos torná-los rarefeitos. Acredito mais em implicações, comprometimentos, hibridizações, sem perder as matrizes, porque essas fundamentam a cultura popular, dão nexo e as explicam.

Concluindo, neste mundo midiatizado, alucinantemente espetacular e fugaz é preciso não perder o foco, por que tenho convicção que meu fazer não é exótico – sei que temos religião e não mera superstição; sei que temos cultura e não simples tradição e, principalmente, sei que temos arte e não apenas folclore… e quem quiser experimentar seja bem vindo.
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA ÀSÉ NEGO VELHO

NOTAS

(1) Isso se obtém, não por alguma enfatização direta da força poética, mas pela simples adaptação de situações de uma cultura a outra, sob forma híbrida. (…) O híbrido, ou encontro de dois meios, constitui um momento de verdade e revelação, do qual nasce a forma nova. Isto porque o paralelo de dois meios nos mantém nas fronteiras entre formas que nos despertam da narcose narcísica. O momento do encontro dos meios é um momento de liberdade e liberação do entorpecimento e do transe que eles impõem aos nossos sentidos.

(2) O culto Gelede das Iya -Mi- Agbá, também chamadas Iyami, simboliza formas coletivas do poder ancestral feminino apresentado em seu duplo aspecto – protetor e generoso / perigoso e destrutivo. O poderio das Iyami, principalmente atribuído às mulheres já velhas, e que pode pertencer igualmente a jovens que o recebem por herança ou o adquirem das mais velhas, está ligado à concepção africana de que a sabedoria só vem com a idade, com a experiência de vida. Qualquer mulher pode conseguir esse poder, voluntariamente ou sem que o saiba, após um trabalho feito por uma Iyami. Na sociedade Iorubá a mulher, de acordo com estas características, possui em si todas as qualidades e poderes de uma Iyami. Em várias épocas de sua existência as mulheres vivem diferentes aspectos desse poder feminino, como parte de sua função social, cultural e espiritual. O poder feminino, em seu duplo aspecto – criador e destruidor – é a síntese da vida, fornece o axé necessário à continuação da vida na Terra.

Não é possível controlar o poder das Iá Mi Oxorongá. Esse poder não existe para ser controlado, é preciso que flua livremente no mundo, para melhor cumprir seu papel nutridor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUDRILLARD, Jean. A Transparência do Mal – ensaio sobre os fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 2ª edição, 1992.

CAPRA, Fritjof. O Tao da Física. SP: Cultrix, 1983.

GREINER, Cristine. O registro da dança como pensamento que dança. D´Art, São Paulo, v. 04, p. 38-43, 2002.

MCLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação como extensões dos homens. São Paulo: Cultrix, 2004.

VERGER, Pierre. Grandeza e decadência do culto de Ìyàmi Òsòròngà entre os Yorubà. in: MOURA, Carlos
Eugenio Marcondes. (org). As senhoras do pássaro da noite, SP: Edusp, 1994.

WARNIER, Jean-Pierre. A mundialização da cultura. Edusc, 2003.

ZENICOLA, Denise. Samba de Gafieira: Performance da Ginga. CLA-PPGT, 2005. Tese de Doutorado. UNIRIO, n/pub.

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