Demonização sob medida?!

Demonização sob medida

Como mediador de um blog, tenho, a todo custo, que manter uma certa isenção, ou seja, não ser tendencioso em relação as minhas crenças em detrimento do que é feito em outros segmentos da religião. Tarefa muitas vezes impossível de ser cumprida a risca. Segue a baixo um trecho de um comentário meu em resposta a uma pessoa que procurou um pai de santo para resolver um problema e saiu de lá com uns tantos outros problemas.
“Em quase todos os casos quando Dirigente diz que transita entre Umbanda e Candomblé, o que acontece é que ele está tentando transmitir uma ideia de mais poder e mais força com essa frase. Vejamos o seguinte. O pensamento corrente é que umbanda é do bem e candomblé é do mal, ok? É assim que acontece não é isso? Então, com esta sugestão de ser “traçado”, o Dirigente diz ao subconsciente do leigo o seguinte, “por ser traçado eu conheço o lado negro da “coisa”, e o leigo entende que por isso este Dirigente tem mais poderes que uma umbanda tradicional/popular, aquela que é considerada do bem. Porque no imaginário popular o mau tem mais condição de realizar as coisas/pedidos/desejos em menor tempo, e se bater um arrependimento do pedido feito, basta se arrepender e rezar que o pedinte será salvo dos “pecados” cometidos. Pois bem, sendo ele, o Dirigente, conhecedor do lado negro, isso lhe dá maiores poderes. Logo, ele será tb temido, e esse é o status que tanto falo. Por isso, quando ouço a frase Umbanda traçada, em minha cabeça vem sempre esta conjunção. Essa combinação de oportunidades para ser visto como poderosos”
A partir desta discussão, o pensamento que sempre me ocorria era “Porque tantos demonizam Exú?” Hoje, lendo o texto “EXU, DE MENSAGEIRO A DIABO Sincretismo católico e demonização do orixá Exu, do professor Reginaldo Prandi.”, tive então a certeza de que esta degradação tem também um certo e grande interesse econômico que precisa se manter as custas da fé e necessidades do povo desesperado por soluções rápidas e milagrosas parar os mais diversos males, da alma ao coração. Então vejo que o trabalho desenvolvido ao longo de quase três anos na tentativa de desmistificar certos assuntos da religião está na direção certa. O comentário acima diz respeito à idéia comum e muito difundida de que o culto ao diabo é atributo de uns poucos “iluminados” que conhecem e manipulam estas energias e por este motivo devem ser reconhecidos como autoridades e regiamente pagos pelos serviços prestados. Chegamos ao mercado, ao ganho financeiro, ao tudo pode em benefício do “meu bolso”, quero dizer “do meu cliente”, e a expressão “do meu cliente” é cada vez mais disputada, e territorializada, cada cliente é disputado a golpes de búzios e cartas, cada poste é disputados por vários cartazes que prometem um mundo.
É o mercado.
Em outro trecho do texto diz o que de certa forma eu respondi acima.
“Formalmente, a umbanda afirma que só trabalha para o bem, mas dissimuladamente criou, desde o momento de sua formação, uma espécie de segunda personalidade, com a constituição de um universo paralelo, um lugar escondido e negado, no qual a prática mágica não recebe nenhum tipo de restrição ética, onde todos os pedidos, vontades e demandas de devotos e clientes podem ser atendidos, sem exceção, conforme o ideal da magia. Inclusive aqueles ligados a aspectos mais rejeitados da moralidade social, como a transgressão sexual, o banditismo, a vingança, e diversificada gama de comportamentos ilícitos ou socialmente indesejáveis. Se é para o bem do cliente, não há limite, e a relação que se restabelece é entre o cliente e a entidade que o beneficia”………
“Por outro lado, no processo de competição entre as religiões no contexto de um mercado de bens mágicos cada vez mais agressivo e de ofertas cada vez mais diversificadas, muitos terreiros, para se distinguir de outros, fazem questão de enfatizar e dar relevo às supostas características diabólicas de suas entidades da esquerda. Em candomblés desse tipo, geralmente freqüentados, e às vezes dirigidos, por pessoas que estão longe de se orientar por modelos de conduta mais aceitos socialmente, se pode contratar qualquer tipo de serviço mágico, para qualquer que seja o objetivo em questão. E Exu, o diabo de corpo retorcido, postura animalesca e voz cavernosa, é a entidade mobilizada, juntamente com a espalhafatosa e desbriada companheira Pombagira, para os trabalhos mágicos nada recomendáveis que fazem o negócio rendoso de um tipo de terreiros que eu não hesitaria em chamar de candomblé bandido”…….
“Nesse tipo de paródia religiosa, que representa o degrau mais baixo da histórica decadência a que Exu foi empurrado pelo sincretismo, o culto aos orixás é pouco significativo, fazendo-se uma ou outra festa ao ano para os orixás apenas para legitimar as sessões dedicadas às imitações degradadas do orixá mensageiro.”
Foi preciso tanto copia e cola para que eu não falasse isso tudo sozinho, para que o meu discurso tivesse respaldo, tivesse legitimidade.
Exu foi deliberadamente prejudicado e mal interpretado pelos estudiosos e missionários católicos dos séculos XIII e XIX, isso é fato. A história da formação religiosa Brasileira é bem clara quando fala em “conversão”, onde deveria ser lido “ou se converte ou morre”. O próprio modelo de educação formal ajudou a criar e sedimentar a idéia de que tudo que é de negro é ruim, nada presta, é menos, é menor, e a religião não deveria ser diferente, uma religião de bárbaros e selvagens em contraposição a idéia do catolicismo onde tudo que provem desta religião é belo, bom e aceito como modelo de comportamento socialmente perfeito. Bem, sendo assim, só restava então ao negro aceitar esse modelo imposto. E ao menos viver.
Este modelo católico de crença e controle da sociedade precisava de um elemento que pudesse desagregar as crenças e sociedades negras e ao mesmo tempo evidenciar o seu papel de subalternos social e religiosamente. Foi ou era o controle perfeito? Não me parece intencional ou pessoal que tenha sido o orixá Exú, apenas Ele se enquadrou no modelo necessário. Derrubando e sujando a principal peça do culto religioso, Exú, todo o resto da crença se desfazia, tudo aquilo que era tido como certo para um povo, para uma cultura, agora passou a ser dito e “provado” que era do mau, que não era coisa de Deus, por tanto só restava aos fies a conversão e negação daquilo que foi maciçamente apresentado como negativo e degenerado, um culto primitivo e de conotação malévola.
Não bastasse esse começo torto, o culto aos orixás sofreu com repressão, estigmatização, falta de organização e legitimidade e toda sorte de problemas estruturais, mas principalmente sofreu com as divisões, cisões e disputas internas pelo poder e pelo conhecimento, um aluta que hoje vemos inútil e desnecessária e que se mostrou muito prejudicial a própria religião que viu seus fundamentos, dogmas, ritos e mitos aos poucos se perdendo. E por este motivo, foram sendo recriados, reinventados, dando margem a entendimentos equivocados de tantos aspectos da religiosidade. Mas o mais cruel foi a aceitação e em parte cômoda, pois atraía atenção da clientela, da idéia de que Exú é o diabo, e sendo Ele o diabo, a manipulação de suas forças conferia ao pai/mãe de santo uma posição de superioridade, medo, respeito e respeitabilidade na comunidade e isso se deu até mesmo em grandes casas de axé que serviram de exemplo para as demais casas. O sincretismo passou a ser o correto, o usual o aceitável.
Com a invenção/criação da Umbanda, a situação religiosa da época, que já era complicada, acabou por piorar muito, porque o sincretismo foi quase que oficializado no Brasil, muitos eram ao mesmo tempo católicos e umbandistas, e foi assim por muito tempo sendo corroída a imagem da religião de culto a orixá. Há uma corrente que tenta defender que essa degeneração do comportamento religioso em relação a Exú é fruto da própria sociedade. Para mim isso é um caso claro de mercado, de fenômeno mercadológico. Onde há demanda há oferta, seja lá de que bem for, mesmo que o bem seja a fé. Esta tentativa de defesa só faz piorar a situação que hoje se encontra a religião, onde vemos em cada esquina um anuncio de “trago seu amor”, “resolvo seus problemas”, sem contar os Fulano do diabo, Beltrano de Mulambo e por aí vai a degeneração, e o mercado da fé onde o principal ator é Exú, apresentado nos mais diversos papeis e serventias, sendo manipulado indiscriminadamente de acordo com as necessidades “do meu cliente”.
Exú foi demonizado e agora esta imagem está sendo explorada a exaustão por pessoas que deveriam resgatar e orientar, cuidar e zelar, mas, e principalmente, deveriam ser líderes espirituais, mas que só visam o lucro a ostentação e o status na comunidade. Só não sabemos até quando Exú vai permitir isso. O que mais me preocupa é que ainda hoje discutirmos este assunto, se Exú é o diabo? Isso me diz que nas casas de axé os filhos não são bem orientados, não há interesse nos zeladores em trabalhar a religião e os filhos no caminho da educação cultural e religiosa, e o que continua valendo é a manutenção do poder e do “conhecimento” que sem dúvida eleva o status do pai de santo na comunidade. Acho que me perdi no texto mas não vou modificar por que creio firmemente que a grande parcela de culpa, nos dias atuais, de Exú continuar sendo degradado e humilhado, ainda é nossa, ainda é a falta de comprometimento dos líderes da religião com a educação e informação de qualidade .E logo de quem estamos falando, de Exú, o senhor da comunicação.
Mas graças aos orixás também em outro trecho do texto, temos o seguinte argumento.
“É evidente que em certos terreiros da religião dos orixás, sobretudo em uns poucos candomblés antigos mais próximos das raízes culturais africanas, cultiva-se uma imagem de Exu calcada em seu papel de orixá mensageiro dos deuses, cujas atribuições não são muito diferentes daquelas trazidas da África.”
“No interior do segmento afro-brasileiro, podemos contudo observar nos dias de hoje um movimento que encaminha Exu numa espécie de retorno aos seus papéis e status africanos tradicionais.”
Meu entendimento deste assunto é que Exú foi e é de certa forma o grande bode expiatório, o pau pra toda obra. Mas da forma como está aquecido o mercado da fé, com tantos e tantos vendedores de ilusão na praça, se estapeando por um lugar ao sol, eu acho que Exú anda passeando com seu chapéu de duas cores.
Tomeje, 2010.

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