Mãe branca de Yemanjá. Final.

Foi numa dessas ocasiões, durante uma festa de candomblé no terreiro de Joãozinho da Goméia, em Caxias, que outra pessoa surgiu de dentro de Gisèle. Sob as batidas hipnotizantes dos atabaques, ela sentiu um vazio no estômago que lhe tomou os sentidos e a derrubou no chão. A francesa havia “bolado no santo”, no dizer dos adeptos da religião afro-brasileira: Yemanjá “tomou sua cabeça” para dizer que a havia escolhido, conforme explicou Joãozinho da Goméia. “No início, tentei resistir. Disse a ele que minha família não sabia de nada e não podia deixar minhas obrigações na embaixada. Mas nos dias seguintes fui sentindo tonteiras, e virou uma coisa que eu não podia mais evitar.”

Em outubro de 1960, a “embaixatriz”, como o pai-de-santo a chamava, aproveitou uma viagem de Jean Binon a Paris para “fazer a cabeça”, sua iniciação, na casa de Goméia. “Disse a ele que não poderia raspar o cabelo todo para ninguém perceber. Só aqui em cima, onde coloquei um coque postiço”, ri. “Eu tinha duas vidas, a de mulher de diplomata e a de filha de santo.” O marido, obcecado com a carreira, nem notou. Enquanto isso, madame aprendia a depenar galinha, pegar lenha e matar “bicho de quatro pés”. Mas não seria tão cedo que ela iria incorporar sua nova personalidade.

Em 1962, a administração francesa chamou seu funcionário de volta e a família retornou a Paris. Os filhos já estavam criados e Jean e Gisèle, compreensivelmente, tinham virado dois estranhos. Veio a separação. Mais dolorosa para Gisèle, porém, era a saudade dos terreiros. Decidiu estudar o assunto na faculdade: “Era uma maneira de me manter ligada ao candomblé, para não afundar.”

Sem sequer conhecê-lo, marcou um encontro com o sociólogo Roger Bastide, que havia feito parte da missão francesa trazida ao Brasil em 1938 para a fundação da Universidade de São Paulo, ao lado de Claude Lévi-Strauss e Fernand Braudel. Bastide era autor de um estudo clássico, O Candomblé da Bahia. Gisèle pediu que ele a orientasse e desembestou a falar sobre sua experiência. O professor a interrompeu: “Minha senhora, escreve, escreve, que já está sabendo mais do que eu.”

Em 1970, Gisèle defendia tese de doutorado em antropologia na Sorbonne, intitulada Candomblé Angola (publicada no Brasil em 2006 pela editora Pallas, em versão ampliada, com o título Awô: O Mistério dos Orixás). Fez amizade com o fotógrafo e etnógrafo Pierre Verger, que também desembarcara na Bahia, em 1946, para documentar as religiões afro-brasileiras. Mas, como não queria voltar ao País com uma mão na frente e outra atrás, prestou concurso e esperou até 1972 para conseguir um posto no Rio.

Quando finalmente voltou ao Brasil, como conselheira pedagógica do serviço cultural francês, Joãozinho da Goméia já havia morrido e ela dificilmente seria aceita por outro babalorixá. A oportunidade viria pelas mãos de seu amigo Pierre Verger, que se hospedou no apartamento de Gisèle na Lagoa com o pai-de-santo baiano Balbino Daniel de Paula, sobre quem o fotógrafo fazia um filme. Um acidente, porém, se interporia no caminho.

No dia 8 de dezembro de 1973, no meio de uma tempestade, o carro de Gisèle rodou numa curva da Rodovia Washington Luís. Ela feriu a cabeça, teve cinco costelas quebradas e sofreu perfuração do pulmão. Balbino se prontificou a ajudá-la. Gisèle convalescia havia 11 dias sem sair da cama, na casa que acabara de comprar em Santa Cruz da Serra, quando o pai-de-santo trouxe oferendas para o orixá da amiga. “Então, ele soltou fumaça de charuto no meu rosto e a minha Yemanjá veio. Eu levantei, dancei e ele se encantou.” Pai Balbino completou a formação de Omindarewá – que quer dizer “água límpida” – e ela passou a se dedicar exclusivamente aos orixás depois que se aposentou do serviço público francês, em 1980.

Hoje, em seu terreiro que tem mais de três décadas, ela diz não sentir banzo de sua França natal. “Só dos queijos”, ressalva – que troca sem susto pelo xinxim de galinha e o caldo de siri favoritos. Se deixou dois varões em Paris, ganhou os mais de 250 filhos-de-santo que já iniciou. E, embora valorize a cultura europeia e a formação intelectual que recebeu, acha tolice compará-las ao universo mágico afro-brasileiro: “Os negros viviam das folhas, observando os passarinhos, sabiam se ia chover pelo frêmito da maré. São dois pesos que não se devem colocar na mesma balança.” Roger Bastide, Pierre Verger, Claude Lévi-Strauss… por que tantos de seus conterrâneos interessados nesse universo? “É uma característica do espírito francês, não só de intelectuais”, analisa a doutora do candomblé: “Sempre procuramos um outro jeito de ver o mundo.”

Em 30 anos, a mãe-de-santo viu sua pátria adotiva se transformar. Depois de sofrer dois assaltos à mão armada no terreiro – em um dos quais seu filho Claude, que estava de visita, levou uma coronhada e teve o tímpano perfurado – , concluiu que a violência é hoje o grande demônio brasileiro. “Eu vi tudo piorar”, diz ela. “Era tão bonito antes, tão agradável…” E o futuro, infelizmente, não está nos búzios de Omindarewá.

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