Mãe branca de Yemanjá parte 1

Mãe branca de Yemanjá

Ela é a síntese França-Brasil: trocou o grand monde de Paris por um terreiro na Baixada Fluminense

Ivan Marsiglia – O Estado de S.Paulo

Fábio Motta/AE

Durante uma festa em 1959, sentiu um vazio que a derrubou no chão: havia ‘bolado o santo’

SANTA CRUZ DA SERRA, RJ – De Gisèle Cossard Binon, cidadã francesa, mulher de diplomata, herdeira de uma mansão no Parc des Sceaux, nos arredores de Paris, branca de olhos azuis, nasceu Omindarewá, mãe-de-santo, dona de terreiro e moradora da Baixada Fluminense. A concepção dessa nova e inusitada persona talvez remonte aos ecos de sua infância no Marrocos, onde nasceu e viveu até um ano e meio de idade. Ou pode ter sido gestada durante sua passagem pela África, onde morou oito anos com os dois filhos e o marido, funcionário do serviço exterior francês. Quando a “outra” finalmente veio à luz, numa viagem ao Brasil, Gisèle a manteve escondida da própria família e dos colegas da fina flor da sociedade franco-carioca. Assim subsistiu por mais de uma década, até sua possessão irrefreável e definitiva.

A trajetória da socialite francesa que virou autoridade do candomblé daria um filme. E deu. O documentário, dirigido por Clarice Ehlers Peixoto, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), foi produzido com o apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa (Faperj) e será lançado em setembro no âmbito das comemorações do Ano da França no Brasil. “O que mais me impressionou foi a ruptura que ela fez com o mundo burguês e intelectual para ir viver em Santa Cruz da Serra, na Baixada Fluminense, no meio de gente simples e de pouca instrução”, conta Clarice.

Aos 86 anos, Omindarewá ou Gisèle Francesa, como é conhecida pela vizinhança da cidade à beira da estrada Rio-Petrópolis, comanda um arborizado terreiro, decorado “com gosto francês”, na definição da diretora do filme: móveis rústicos, luminárias de garrafões de vidro cortados, esculturas e máscaras africanas. Um mobiliário coletado ao longo de uma existência aventurosa, orientada, como Gisèle diz logo no início do documentário, por um “desejo ardente de evasão para uma outra vida, não-conformista”.

Filha de pai professor e mãe pianista, ela cresceu em Paris entre aulas de violoncelo e balé, mas sem grande entusiasmo pelo savoir-vivre francês. “Só tinha olhos para as brincadeiras, as pessoas e a vida lá fora.” Esse desejo de evasão esteve presente desde sempre: “Meus pais falavam muito do tempo que vivemos no Marrocos como uma época encantada. Então, fiquei com essa lembrança sem ter.” Essa rebeldia difusa iria encontrar uma causa durante a 2ª Guerra Mundial e o jugo nazista sobre a França.

A família toda se engajou na Resistência e Gisèle, vinte e poucos anos, cruzava as ruas de Paris de bicicleta, com mapas sobre as posições alemãs escondidos em um fundo falso na sola do tamanco. Foi nessa época que conheceu o jovem professor de geografia com o qual se casaria em 1945. Nos dois anos seguintes, Jean Binon deu-lhe dois filhos, Bertrand e Claude, e, em seguida, recrutado pelo Ministério das Relações Exteriores, realizou-lhe o sonho de morar na África – pesadelo de nove em cada dez mulheres de diplomatas brasileiros. Em 1949, a família se mudava para a República dos Camarões para tocar um projeto de educação na então colônia francesa. Três anos depois iriam para o Chade, onde viveriam mais cinco.

“Eu estava felicíssima, caçava, nadava no Rio Chari e tentava entender aquela realidade tão diversa”, lembra Gisèle, que logo perceberia, no entanto, que brancos e negros viviam em mundos separados. E os primeiros se julgavam superiores e não faziam nenhum esforço para compreender a mentalidade africana. Se o calor não incomodava o casal Binon, a temperatura política começava a escalada que culminaria nas guerras coloniais de libertação. A sensação se confirmou durante a viagem de Land Rover que o casal fez pelo continente em 1956. Com Gisèle ao volante e cuidando da mecânica — “meu marido não era nada prrrático”, diz, com o sotaque que nunca perdeu – percorreram 14 mil quilômetros de estradas precárias, cruzando países como o Congo, Uganda e Quênia. Na volta, decidiram “ir embora antes de levar um pontapé”.

O intervalo em Paris não duraria mais que dois anos, até que Jean Binon fosse nomeado conselheiro cultural da Embaixada da França no Rio de Janeiro, em 1959. Gisèle chegou ao porto do Rio numa Quarta-Feira de Cinzas. “Uma sujeira, gente dormindo na rua com as fantasias rasgadas e a maquiagem derretendo, aquilo me impressionou muito mal”, lembra. Começou uma vida entediante, feita de recepções e canapés, que viraria de cabeça para baixo ao conhecer Abdias Nascimento, dramaturgo, poeta e ativista negro que a iniciou na cultura dos morros e subúrbios cariocas.

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