MAMIWATA: dança em deslocamento

MAMIWATA: dança em deslocamento

Mas Mamiwata é sempre um mito contemporâneo, mesmo ali onde parece desaparecer, discreta talvez, porque protegida pelas máscaras corporais ou seja pelos deslocamentos de identidades. Por isso, nossa escolha pelo uso em paralelo de imagens virtuais juntamente com algumas cenas, pois estas são imagens, representações contemporâneas das identidades, o mito incorporado pela contemporaneidade, do próprio mito. No palco, corpos dançam dialogando com estas imagens, representações culturais, corporais, coletivas… É partindo desse movimento, ponto dinâmico onde convergem os âmbitos pessoais, sociais e culturais que procuramos sensibilizar o público para a importância das construções de identidades na qual todos nos movimentamos quando nos deslocamos.

Assim como não pensar e não refletir acerca desses deslocamentos e “alter ações”?  Porque não estar presente ou sentir a presença dessa vontade e prazer de colocar e tirar máscaras corporais? Como não se sentir tomado por esse rito e por esse mito, tão contemporâneo e presente? Assim, justificamos nosso trabalho por ele proporcionar uma série de reflexões críticas no âmbito da cidadania.  Nossa proposta é que através do corpo/bailarino/vídeo, possamos trazer à luz esses signos não tão presentes na História de nossa cultura e país, na atualidade.   Nosso objetivo principal é levar ao público uma experiência artística e investigativa de movimentos presentes, ora ocultos ora manifestos, na história de nossa formação cultural e por isso também de nossos corpos. A ancoragem no corpo foi decisão importante por permitir fazer a passagem da experiência coletiva para a cena enquanto um processo performático contribuindo para a efetivação do ciclo ritual.

Mamiwata consolida-se então como uma pesquisa corporal prático teórica para montagem do espetáculo de dançateatro e que faz parte do projeto de pesquisa Kiriê de Griot, composto de pesquisa etnográfica de danças, montagem e apresentação pública em Dançateatro e consequente produção, edição e circulação de vídeo documentário em Vídeo Dança, sediado no Pólo Universitário de Rio das Ostras, da Universidade Federal Fluminense – UFF. Um projeto multiarte em Dança/teatro/vídeo que visa rememorar a rota ilegal de escravos do Norte Fluminense ao Rio de Janeiro, o século XIX, atual estrada BR 101, rota que possivelmente trouxe este mito até nós. [1]

Do Corpo e seus Usos

Neste espetáculo fazemos a hibridização de técnicas de Dança Ocidentais e Orientais, aproximamos as chamadas danças contemporâneas e as tradicionais; o resultado é Dança Contemporânea, Dança Afro Brasileira, Dança Butoh e Danças do Benin, num mesmo corpo. O corpo enquanto espaço sensório está no centro da nossa ação performática e ainda como foco de deslocamento de pontos de vista para as re-elaborações destas experiências e fusões de um passado/presente do tempo mítico. Nosso entendimento de fusão, adaptação aos corpos e centralidade do corpo na discussão artística nasce da necessidade de encontrar um corpo que desse conta deste mito, e da nossa vontade de transformar a palavra em ossos, tendões e carne; a vontade de canibalizar essas informações culturais apresentadas por meio dessas técnicas. Essa canibalização vai resultar num tipo de criação que não existe nem no Butoh nem nas danças afro brasileiras ou do Benin. Essa opção inicia sobre o que é ser brasileiro num mundo tão internacionalizado. Instiga-nos manter nosso vínculo cultural apesar de toda essa mistura e das adaptações que nossos corpos farão para receber estes princípios estrangeiros e os familiarizar. Em meio à montagem criamos e desenvolvemos ações teatrais performáticas em blocos temáticos, sob a forma da expressão do corpo, nascidas literalmente na pesquisa do encontro destas linguagens, para retomar tradições antigas em técnicas contemporâneas e também ratificar, a ideia quase esquecida de que o dançarino não dança para si, mas para reviver algo muito maior.

No Butoh, uma forma marginal de expressão, como era considerada, e que passou a ser chamada de Ankoku Butoh; dança das trevas, hoje simplesmente Butoh, calcamos nosso trabalho nas arrojadas formas desta dança contemporânea, que expressa ao mesmo tempo tantas ideias diferentes.  Mobilidade e/ou imobilidade das extremidades corporais, que os braços, as pernas, o tronco, o pescoço, a cabeça levam o performático a mergulhar na viagem corporal que conduz à poesia.

“Nossas feridas do corpo, eventualmente, fecham e cicatrizam. Mas há sempre feridas escondidas, aquelas do coração, e se você sabe como aceitar e suportá-las, você descobrirá a dor e a alegria que é impossível expressar com palavras. Você conquistará o domínio da poesia que só o corpo pode expressar” define. (Kazuo Ohno apud GREINER:1998, p. 49).

 

Os dançarinos do Butoh quase não usam vestimentas, para eles a roupa veste o corpo e o corpo a alma. E foi destes princípios de justaposição de ideias que nos fez aproximar desta técnica de dança, bem como, do seu envolvimento com os elementos da natureza. O Ma, um princípio oriental que remonta à mitologia japonesa e, uma forma de tornar o invisível visível, na fusão do espaço com o tempo, profundamente complexo ao entendimento ocidental, tem no Butoh a exploração dos espíritos que habitam o Ma. Segundo Baitello Jr, o sistema deste princípio Ma apresenta nove etapas de experiências. (apud GREINER, 1998, XII, p. 121)

Himorogi- representa o lugar sagrado e o lugar da sua criação;

Hashi – significa o espaço e o tempo entre duas coisas ou acontecimentos, suas bordas e intervalos;

Yami – mundo das trevas e conjuga o mundo da escuridão para o da luz;

Suki – a abertura;

Utsuroi – processos de mudança;

Utsushimi – representa a projeção do físico na realidade, o espaço onde a vida é vivida;

Sabi – imagem de um movimento preciso;

Susabi – a transgressão das regras, falta de harmonia, caos e desordem de tempos modernos;

Michiyuki – pausas e paradas das viagens.

 

Nas danças tradicionais do Benin, procuramos captar suas características da busca do movimento no inconsciente comum a todo homem, a beleza e a decrepitude, a simplicidade e a complexidade, o cômico e o trágico, a profunda concentração, quase um transe, alavancado pela dança. Na prática os joelhos mais dobrados, curvatura da coluna/escoliose mais pronunciada, o tronco inclinado (quase um plano inclinado, não relaxado e alongado para frente), o diafragma aberto, projetado pela ampliação do plexo, valorização do sapateado no chão, guizos nos tornozelos, a dança mais para si, onde o performer é quem dança, a dança é um solo individual, criativo e pessoal, é um performer intérprete, grande alongamento para trás dos braços, pela ondulação dos cotovelos. Um dança que não evidencia o rebolado e sim os glúteos elevados para trás, delicadeza no tocar o chão, pouco salto e quando há a ênfase do salto é para baixo é envolvimento suave, delicadeza e velocidade baixa, pernas mais unidas e com o maior deslocamento do tronco para a frente, dança num ritmo constante lento, evoluindo em pequenos passos, como deslizando, um moto contínuo em suave sapateado dos pés, dá a sensação  do  desequilíbrio precário e movimentação circular. Nesta dinâmica ressaltamos ainda a relação do corpo como sentidos da natureza, o enraizamento dos pés, a leveza dos movimentos das mãos e braços se ramificando ao tempo presente, e ao mesmo tempo apresentando movimentos de conhecimentos ancestrais.

Na Dança Afro Brasileira, mais especificamente as executadas para palco e praticadas no Rio de Janeiro, pesquisamos uma dança em que o tronco fica mais  verticalizado, embora com flexão de joelhos, tem maior oscilação lateral da coluna, tronco com ondulação céfalo-caudal,  espiralar, movimentação mais centrada no tronco que oscila treme e rebola, a valorização do quadril no movimento. Preferência para movimentação coreografada, decodificação do movimento padronizado, dança mais para fora, maior espetacularidade, maior exposição do corpo, braços em plano baixo e ou médio, pouco uso no alto, quando alto há força nas mãos, mãos geralmente tencionadas, pés tocam e ou batem no chão, presença de pulos e saltos com ênfase em cima, maior evidência do rebolado em detrimento do levantamento do sacro, joelho menos dobrados, pernas mais afastadas, maior base e equilíbrio no chão, o movimento é mais sexual que sensual, força e velocidade, mais energético e saltitante; provocador, vigor, duo em grandes rebolados, união de corpos, ombros ondulam com força em movimento que faz os seios balançarem, corpo mais exposto. Corpo que mostra mais, sexualiza mais, corpo que foi escravizado, mais objetal.

Se é através da alma, emoções da vivência de cada um, que são criadas as seqüências gestualísticas que formam o Butoh, já nas danças africanas do Benin e afro brasileira, a força e performance ora vigorosa ora sutil de gestual minimalista, apresenta o vigor do movimento potente e tribal, de grupo como um todo; a tensão entre a apropriação e a violência.

Se no Butoh a maquiagem melancólica, o branco sobre todo o corpo, faz com que os músculos sejam realçados, e suas formas expressivas delineadas em movimentos essenciais, se valorizem pela ausência de pelos, as danças Afro brasileiras visibilizam a recuperação da vitalidade e a força do corpo, de um corpo domesticado pelas atividades cotidianas e esmagado pelas regras estabelecidas.

Como produto destes sucessivos encontros de culturas e técnicas do corpo, trabalhamos em Mamiwata o desenho de cada gesto simbólico que estimula ideias, associações e emoções tramando uma visibilidade: as intensidades, os afetos que atravessam os corpos, a música, os movimentos, que são expressos através dos gestos. Realçamos então os fluxos migratórios no corpo, princípios de deslocamento, a análise dos personagens errantes, a viagem como tema coreográfico, as formas de representação do estrangeiro e da xenofobia.

Finalizamos provisoriamente com a afirmação que tratamos o corpo que se desloca como o veículo de expressão da errância enquanto busca da alteridade, a metáfora da vida como uma “viagem”, e sempre lembrando que a menor distância entre dois pontos é a Dança.

Axé!

Bibliografia:

BACHELARD,  G. A. Poética do Espaço. SP: Martins Fontes, 1998.

BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. RJ: Jorge Zahar, 2001.

DREWAL, H. J. Sacred Waters.USA: Indiana University Press, 2008.

GREINER, C. Butô pensamento em evolução. SP: Escrituras, 1998.

HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. BH: UFMG, 2003.

SANTOS, B. de S. Para além do Pensamento abissal: das linhas  globais a

uma ecologia dos saberes, Revista Crítica das Ciências Sociais. RJ: 78, 3-46, 2008.2

JUNG, C. G.  O Desenvolvimento da Personalidade.  Petrópolis:  Vozes, 1986.

SANTOS, J.R. A inserção do negro e seus dilemas, Parcerias Estratégicas. RJ: 6, 110-154, 1999.

SCHECHNER, R. O que é performance. In: Revista O percevejo, Programa de Pós Graduação em Teatro, RJ: UNIRIO.  Nº11, vol 12, RJ, 2003.

TURNER, V. Dramas, fields and metaphors. Ithas:  Cornell University, 1974.

 

 

 

 

[1] Como já dito anteriormente ainda estamos em meio à pesquisa e já encontramos diversos indícios e presenças deste mito na região.

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