O candomblé realmente se libertou dos sincretismos?

O candomblé realmente se libertou dos sincretismos?

Definição do dicionário Michaelis para sincretismo
sin.cre.tis.mo
sm (gr sygkretismós) 1 Filos Sistema que combinava os princípios de diversos sistemas. 2 Amálgama de concepções heterogêneas; ecletismo. 3 Gram Fenômeno de uma forma lingüística ou de uma desinência acumular várias funções. 4 Sociol Fusão de dois ou mais elementos culturais antagônicos num só elemento, continuando, porém, perceptíveis alguns sinais de suas origens diversas.

Creio firmemente que esta é uma pergunta que deveríamos nos fazer sempre e buscar com sinceridade e serenidade a resposta que cada um tem dentro de si sobre este tema.

Minha teoria de que o candomblé ainda não se libertou dos sincretismos está baseada na observação crítica de fatos. Um olhar atento aos dados históricos fornecidos por livros e periódicos, do início do século XX passando pela repressão religiosa e policial até os dias de hoje, evidencia que nesta trajetória o candomblé, já desde sua criação, mantém traços de diversas culturas incorporados aos seus ritos/credos. E digo mais, estas misturas já existiam em território africano.

Esta forte presença, sincrética em diversos aspectos, e desmentido veementemente nas Casas de Axé, tem conferido uma aura de tabu à diversos temas nas Comunidades de Terreiro (Casas de Axé) e entre seus adeptos. Por vezes este tema, sincretismo, é forçosamente escondido ou renegado, ou mesmo relegados ao nível da invisibilidade, do intolerável, do impossível e do inexistente. E para certos assuntos, como por exemplo, a existência do culto aos Caboclos em tradicionais Casas de Axé, ainda ouvimos num tom jocoso alguém dizer: “Isso é sincretismo!”. Numa tentativa de subestimar uma cultura tão ancestral quanto qualquer outra chegada e acolhida em terras brasilis.

Durante um período o sincretismo foi mais que necessário, foi uma estratégia de resistência e sobrevivência da cultura religiosa de origem Africana face ao horror da escravidão e da barbárie da superioridade branca. Assim como outras estratégias de defesa e resistência como as revoltas, as fugas, os kilombos e as “feitiçarias”, o sincretismo seguiu a mesma linha de atuação. A adaptação frente uma necessidade. De certa forma o sincretismo foi uma espécie de guerrilha religiosa.

Hoje, este mesmo sincretismo está tão inserido no cotidiano das Casas de Axé que muitas vezes é preciso refletir se aquele tempo de fato terminou. Se realmente o candomblé pode se intitular puro de origem e de culto. Precisamos avaliar friamente se o sincretismo foi, de fato, capaz de mudar a estrutura religiosa do candomblé em diversos extratos e camadas da sociedade religiosa. E talvez aceitar que o sincretismo nunca deixou de existir.

Minhas observações estarão limitas a três temas:

1 – Exú e suas múltiplas interpretações.

2 – A reelaboração de antigos usos para novas folhas. A liturgia se modificou com a introdução e/ou auxilio do conhecimento dos indígenas nativos?

3 – Cânticos sacros. Oralidade perdida, novas necessidades e temas a serem entoados.

Neste texto vamos nos ater ao sincretismo do Orixá Exú. Nos próximos falaremos dos outros índices.

Exú e suas múltiplas interpretações.

Até os dias de hoje é costume se dizer a respeito da cerimônia do Padê: “É hora de despachar Exú”. Esta frase, corriqueira nas Casas de Axé, por si só já denota um grande sincretismo velado. A cerimônia do padê, ao contrário do sugerido por esta frase, é um dos ritos mais importantes do candomblé porque tem a função de pedir a Exú que nos proporcione uma boa festividade e que realize a “ligação” com os Orixas, Lhes informando que nós os invocamos no Ayê.

A cerimônia do padê é, antes de tudo, um pedido respeitoso de licença ao Orixa mensageiro. Mojuba Exú.

Porém não é exatamente este o conceito normalmente empregado nas Casas de Axé ao se iniciar a cerimônia de “despachar Exú”. Normalmente ela vem revestida de um forte sentimento de medo (disfarçado de respeito) seguida de um grande alívio, ao final da cerimônia, por naquele momento “o mensageiro do mau” ter sido agradado e afastado, podendo assim a festa ser realizada sem problemas e sobressaltos.

Despachar, num sentido de descarregar ou purificar ainda é um conceito largamente difundido entre os adeptos do candomblé devido aos longos anos de intolerância religiosa, perseguições da polícia, da Igreja, do desconhecimento e do medo. Mas foi principalmente o medo da figura (transfigurada de Exú) e que outrora fora tão rentável e lucrativo para muitos que dele se beneficiaram, ainda mais nos dias atuais. Justamente o sincretismo, utilizado para de certa forma legitimar o candomblé como uma crença “não pagã” e que desprezava “o mal”. Bem entendido que este “mal” é o diabo da cultura Judaico Cristã. Terá sido o sincretismo e essa visão deturpada de Exú o algoz dos dias atuais?

O termo “despachar Exú” sempre foi utilizado para mostrar a sociedade branca que ali naquele recinto não se rendia culto ao diabo. Este mesmo argumento foi utilizado durante muito tempo para justificar ou tentar explicar a esta mesma sociedade branca católica, dominante e preconceituosa os motivos que levaram diversas Yalorixas a não iniciarem filhos do Orixá Exú. O discurso era de que o candomblé não fazia pactos com o diabo. “Não se podia colocar o diabo na cabeça de um filho“.

Mesmo sendo de conhecimento da religião, através dos trabalhos de Pierre Verger e outros estudiosos, que na África desde sempre existiram filhos deste Orixá iniciados para Este Orixa. O discurso citado acima era repetido como um mantra, seguido e fortemente fundamentado em “ritos, lendas, itans” e tudo quanto pudesse dar credibilidade ao discurso e ao tabu, bem entendido, criado em terras brasileiras.

Porém,  aqui no Brasil o candomblé, que no meu entendimento, é o próprio sincretismo disfarçado e/ou recriado, impôs às suas comunidades religiosas muitos dogmas e tabus que não tem fundamento na realidade do culto realizado nas regiões Africanas de origem, segundo os pesquisadores deste tema. Para não me estender em tantos outros, vejamos as conseqüências deste único sincretismo em nosso sistema de crença.

Uma das implicações mais corriqueiras foi o paradigma que perdura, ou perdurou por muito tempo. A “certeza” que os filhos de Exú, por questões de liturgia, só poderiam ser iniciados se fossem “dados” para outros orixás como Ogum ou Oxossi ou mesmo como em Recife, para Yemonjá ou Oxalá. Todo este esforço em reelaborar ritos e liturgias, a meu ver, tem o objetivo muito claro de esconder da sociedade e da própria Comunidade Terreiro o sincretismo enraizado no candomblé. Já que neste caso, o “impedimento litúrgico” estava baseado justamente no sincretismo de Exú ao diabo católico.

Outra implicação que o sincretismo tornou já bastante corriqueira, mas desta vez, com algum prejuízo a tradição religiosa do candomblé, é o uso equivocado ( talvez intencionalmente ) de nomenclaturas interculturais com o objetivo de legalizar, legitimar ou dar uma forma justificada à cultos que nunca estiveram ligados originalmente ao candomblé, mesmo na hipótese de aceitarmos a existência do sincretismo no candomblé. É o caso da transformação das Pombagiras (nome derivado do inkise PambuN’ila do Candomblé bantu, Angola) em  “lebas” ou “lebaras” como  forma de legitimar sua inserção no panteão sob o argumento de que se tratam de formas femininas de Exú.

Desde sempre os nomes Legbá ou Elegbara pertencem ao Candomble Jeje e designam um importante Vodum deste segmento; Tratando-se de uma energia exclusivamente masculina. Porém, o emprego do termo leba ou lebara (corruptela  de Elegbara), para disfarçar ou camuflar ou dar status ao culto das pombagiras de umbanda dentro dos candomblés vem sendo forjado e repetido tantas vezes e com tanto vigor nos candomblés, que esta forma, nada mascarada de culto/sincretismo, tem se solidificado como verdade em muitos candomblés.

Ainda que por razões justas de um determinado tempo histórico (conforme citado acima), o sincretismo tenha existido, foi aceito e fez parte da nossa cultura religiosa. E por mais que hoje alguns tentem buscar uma pureza e um distanciamento de tudo aquilo que julgam ”impuro”, o sincretismo é uma realidade e existe nas Casas de Axé. Seja veladamente ou escancarado esta nova cultura faz parte das práticas do candomblé de hoje.

O que pretendo discutir com este texto é a possibilidade de acordo e diálogo entre aqueles que preferem  se esconder em suas ilhas de Axé e esperar que o que resta do candomblé se acabe, para depois levantarem a bandeira da sabedoria, e talvez se proclamarem detentores do verdadeiro Axé”. E aqueles apontados pelos primeiros como “novidadeiros e moderninhos” que buscam explicações que vão além do simples fazer por fazer sem entender ou questionar. O tempo muda e não pára, as novas gerações estão cada dia mais necessitadas de informações coerentes, e nós como mais velhos devemos dar os exemplos.

Sobre este assunto poderíamos falar por dias, mas para o início de discussão creio isso basta. Axé, Tomeje.

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