Mães de Santo. Parte 2

Sr Martiniano Eliseu do Bonfim

Pesquisa bibliográfica, entrevistas e elaboração dos textos:  Agnes Mariano

Acordo diplomático

Ketus, angolas, jejes, haussás, tapás, oyós, ijexás, baribas, aon efans, gruncis. Para quem chegava a Salvador no final do século XVIII e início do XIX, a impressão era uma só: uma cidade negra. Porque negros eram os homens e mulheres que se via pelas ruas, subindo e descendo as ladeiras, transportando mercadorias, vendendo alimentos, carregando água, pescando, cozinhando, erguendo paredes, fazendo a cidade funcionar. Mas faltava uma coisa essencial a essa multidão: união. Para entender a história do candomblé e dessas grandes mulheres é fundamental relembrar alguns episódios da história da África. Quem sabe contar bem o que aconteceu nessa época é o antropólogo e professor da Ufba Renato da Silveira, que estuda o tema da fundação do candomblé da Bahia há mais de 20 anos, desde quando defendeu uma tese de doutorado sobre o assunto, e é autor do livro O candomblé da Barroquinha.

Os primeiros povos a virem para cá em grande quantidade foram os do grupo cultural banto, principalmente os angolas, que criaram os calundus, uma espécie de candomblé simplificado com duas ou três divindades. Aconteceu aí uma mistura grande com os índios, de quem herdaram o conhecimento sobre ervas, originando os candomblés de caboclo. Também vieram muitos outros povos, sendo que os jejes – ou ewés, de língua fon, do antigo Daomé – eram maioria em Salvador em meados do século XVIII. Angolas e jejes se davam bem e criaram uma espécie de cultura de rua afro-baiana com contribuições de ambas as partes. Uma característica importante das expressões religiosas desses precursores, principalmente dos calundus, era a assistência médica que prestavam à população, acrescenta Silveira.

No final do século XVIII, os povos nagôs-iorubás, do grupo lingüístico sudanês, começam a chegar em massa na Bahia. O povo que iria criar aqui a religião que conhecemos hoje como candomblé, incluindo heranças jejes, angolas, mas principalmente o legado dos reinos que compunham o que se chama de Império de Oyó ou país iorubá: os ijexá, que cultuavam o rio Oxum; os ketu, terra de Oxóssi; os aon efan – dos orixás do branco, como Oxalá; os oyós – de Xangô e Iansã e representantes de outros reinos. Segundo Renato da Silveira, o Império de Oyó, que começou a nascer antes do ano mil e teve como primeira cidade Ifé, deve ter chegado a ter oito milhões de habitantes. As suas maiores cidades, entre sete e 10, tinham cerca de 40 a 50 mil habitantes, “o mesmo que cidades européias desse período”, compara.

Mas o grande império, que tinha conquistado e subjugado vários povos, um dia começou a ruir. Era a guerra civil.

Até 1820 e 1830 eram os iorubás que vendiam escravos haussás, tapás, baribas: os povos do norte. Depois, a situação se inverte e os comerciantes muçulmanos é que começam a vender os iorubás. Os senhores de Ibadan e Abeokutá, comprometidos com o tráfico, começam a atacar os vizinhos e os daomeanos também se aproveitam. Com a desagregação do Império de Oyó, criam-se bandos armados que atacam indiscriminadamente e começam a vender escravos – conta o antropólogo.

Começam a chegar à Bahia, então, cidadãos iorubás de todos os tipos, inclusive membros de famílias reais, sacerdotes e sacerdotisas. Entre 1830 e 1835 acontece a queda definitiva da capital: Oyó é invadida e saqueada pelos muçulmanos do norte. No mesmo período, na Bahia, tendo à frente uma Iyá Nassô – sacerdotisa de Xangô na corte de Oyó – funda-se o candomblé da Barroquinha. Do outro lado do Atlântico, renasce a tradição.

A pantanosa Barroquinha era um bairro de negros. Lá estava a Igreja de Nossa Senhora da Barroquinha1, que desempenhou um papel estratégico, de apoio e disfarce para a fundação do candomblé. Desde 1764, havia se instalado ali uma associação de escravos libertos, a Irmandade de Bom Jesus dos Martírios, que anos mais tarde iria arrendar o terreno nos fundos, onde funcionou o candomblé. Os dados sobre esse período não são exatos, os pesquisadores precisam cruzar tradições orais mantidas nos terreiros com documentos de polícia e relatos da época. Como diz o professor Ordep Serra, as variações sobre a história do candomblé são normais, “como as várias versões do Evangelho”. Seguiremos aqui a proposta cronológica de Renato da Silveira.

Primeiro, por volta de 1790, teria sido fundado por membros da família Arô – uma das cinco famílias reais do reino de Ketu – o culto a Odé (Oxóssi). Datam dessa época os ataques a Ketu e a chegada na Bahia das princesas gêmeas da família Arô, capturadas e vendidas por daomeanos com apenas 9 anos de idade. O culto funcionava numa residência na Rua da Lama, atrás da Igreja da Barroquinha, onde hoje fica a Rua Visconde de Itaparica, tendo à frente a africana Iyá Adetá. Depois dela veio a africana Iyá Akalá, introduzindo o culto a Airá – um tipo de Xangô que se veste todo de branco (alá significa pano branco, lembra Silveira). Possivelmente nessa época se deu a saída dos Arô, que foram para Luis Anselmo e fundaram lá o candomblé do Alaketu, conduzido por décadas pela ialorixá Olga do Alaketu, falecida em 2005. Os resquícios desses primeiros tempos ainda estão vivos: no Terreiro da Casa Branca, a festa de Xangô é chamada pelos filhos-de-santo de “Festa de Airá” e, também nesse terreiro e herdeiros de sua tradição, a saudação a Oxóssi ainda relembra os pioneiros: “Okê Odé, okê Arô”, conta o pesquisador.

A terceira grande sacerdotisa do candomblé da Barroquinha foi uma Iyá Nassô. Pessoas dos terreiros, antropólogos e historiadores acreditam que ela não veio para a Bahia como escrava, mas sim, intencionalmente, para reestruturar o culto a Xangô e tentar reorganizar o seu povo nesse momento de desagregação total dos iorubás. Ela estava acompanhada de outras pessoas do alto escalão de Oyó. Eram alguns Essas, um título no conselho de ministro do reino de Ketu, Babá Axipá e Rodolpho Martins de Andrade, também conhecido como Bamboxê Obitikô, entre outros. Há quem diga que a mãe de Iyá Nassô já tinha sido escrava na Bahia, conseguiu a alforria e retornou para a África e que, como muitas outras mães-de-santo baianas, Iyá Nassô era comerciante e morava no Centro Histórico de Salvador.

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