COSMOGONIA YORUBÁ: A CRIAÇÃO E A SEPARAÇÃO DO MUNDO
Como em toda cultura, os yorubás também têm sua teoria sobre a criação do mundo, dos seres e da atuação das divindades neste episódio.
O grande Deus da criação é Olodumare (Olódùnmarè), ou Olorun (Olóòrun – Senhor do Céu). Olorun é o Deus supremo, que age acima dos demais Orixás. Por essa razão, inclusive, o Candomblé é uma Religião monoteísta (acredita em um Deus único).
No momento anterior à criação, tudo que existia era uma massa de ar infinita. Tal massa era o próprio Olorun.
Além do próprio Olorun, só existiam os Orixás primordiais antes da criação do mundo. Estes eram os Orixás do branco (òrisa-funfun),. Essas divindades ocupavam o àwosùn dàra (a morada de Olorun, ou a morada do justo).
O momento mágico de início do nosso mundo e da existência de todos os habitantes é descortinado pelo Odù Ifá Òtúrúpòn-Òwónrín, através de um maravilhoso mito, o Ìtàn ìgbà-ndá àiyé
Ao mover-se lentamente e ao respirar, Olorun deu origem à água. Da relação entre a água e o ar, criou Orixanlá (Òrìsànlá), ou (Òsàlá) o Grande Deus Branco, conhecido também pelo nome de Obatalá (Obàtálà).
No movimento constante de água e ar, parte desta matéria solidifica-se dando origem a um monte de terra avermelhada, a qual Olorun soprou se hálito (èmí) e também o ar divino (òfurufú) para que nascesse Exu Iangui (Èsú Yangí), a primeira forma viva e individualizada do universo.
Da relação entre o ar e a terra, passa a existir Odudua (Odùduwà) (*1).
(*1) Em uma tradução livre, seu nome significaria “a cabaça de onde jorrou vida”. Odududa é frequentemente confundida com o guerreiro mítico divinizado e de mesmo nome, fundador da cidade de Ilê Ifé. A personalidade de Odudua é controvertida. O Padre Boudin, classifica essa divindade como feminina, constituindo assim o par da gênese com Oxalá. Verger discorda, acreditando que a parceira de Oxalá seja Iyemowo.
Olorun decide então criar o mundo para os novos seres. Para tal, convocou Oxalá e a ele entregou o saco da existência (àpò-iwà).
O Deus Supremo, conhecendo todas as coisas, advertiu Oxalá, seu primogênito, a procurar Orunmilá (O Senhor da Sabedoria e do Destino) a fim de que este lhe desse as orientações para obter êxito na incumbência.
Oxalá seguiu o conselho e foi até Orunmilá, o grande oluwò. Este consultou o rosário de Ifá e apareceu Ejiogbe, o primeiro dos 16 odus. Orunmilá então disse que Oxalá teria muitas dificuldades e que estaria sendo testado por Olorun. Recomendou que antes de partir, Oxalá fizesse uma oferenda a Exu contendo uma corrente de dois mil elos, 5 galinhas de cinco dedos em cada pé, cinco pombos e um camaleão. Advertiu-o também a não ingerir bebida alcoólica até a conclusão do trabalho.
Oxalá, no entanto, movido por sua vaidade e prepotência, contestou Oruminlá. Questionou o diagnóstico do sábio, alegando que ele (Oxalá) seria mais importante e mais velho que Exu, razão pela qual se Exu quisesse algo, que fosse atrás de Oxalá na missão.
Oxalá foi teimoso, pois esqueceu que Orunmilá não se equivoca. Foi prepotente, por pensar ser mais importante que Exu. Foi arrogante por esperar que Orunmilá devesse explicações do destino a qualquer um. Deveria saber que ninguém pode ver o rosto de Oruminlá, assim como não pode conhecer a razões do destino.
Oxalá foi também negligente. Desdenhou da predição e partiu no cumprimento da missão, sem atender as predições.
No percurso, deparou-se com Odudua e a convida para a empreitada. Contudo, Odudua recusa-se a acompanhar Oxalá, pois este não teria cumprido as recomendações do oráculo, nem tampouco realizado as obrigações rituais necessárias à tarefa.
Teimoso, Oxalá não deu ouvidos a Odudua e seguiu sozinho, até encontrar Exu na via (òna-òrun). Este, já empossado como olonan (senhor dos caminhos), perguntou a Oxalá se o orixá branco havia feito as oferendas para a jornada. Oxalá, esbanjando superioridade, não deu atenção a Exu; reuniu os Orixás que lhe auxiliariam na tarefa (Olúfón, Eteko, Olúorogbo, Olúwofin, Ògiyán e os demais Orixás funfun) e seguiu adiante.
Irado, Exu resolve se vingar de Oxalá.
Oxalá, ao longo da viagem, desacostumado naquele ambiente inóspito, sentiu muita sede. Parou ao pé de uma palmeira de dendê (igí-òpe), e fincou seu cajado (òpásórò) no tronco para sorver a seiva refrescante, o chamado vinho de palma (emun). Porém, como a bebida é fermentada, possui alto teor alcoólico e Oxalá acabou adormecendo.
Os Orixás que acompanhavam Oxalá ficaram atônitos, pois não conseguiam acordar o líder.
Exu então pegou o saco da criação e o levou de volta às mãos de Olorun, atestando a falha de Oxalá.
Olorun chamou Odudua deu-lhe uma pequena cabaça contendo terra e pediu que esta fosse realizar a incumbência antes conferida a Oxalá, que havia falhado na missão.
O Deus Supremo mostrou a Odudua o lugar determinado para a criação do mundo (òrun àkàxò).
Mais prudente, antes de iniciar sua marcha, Odudua foi a Orunmilá. O Senhor da Sabedoria consultou Ifá e viu Oyeku Meji, o segundo Odu no sistema de Ifá, que é a contra-parte de Ejiobe (o 1º signo).
Orunmilá orientou Odudua a fazer o mesmo ebó antes prescrito a Oxalá.
Odudua atendeu e ofereceu a Exu a cadeia de dois mil elos, as cinco galinhas de cinco dedos, os cinco pombos e o camaleão.
Exu, mostrando a generosidade que tem com aqueles que lhe respeitam, retirou um elo da corrente e o pôs no braço (de onde jamais retiraria para mostrar sua ligação com a gênese). Devolveu a Odudua o restante da corrente e ainda 1 galinha, 1 pombo e o camaleão, avisando-lhe que tais materiais seriam muito úteis à criação do mundo.
E Odudua partiu na expedição. Chegando diante do pilar que une o orun ao aiye (òpó-órun-oún-àiyé), lançou a cadeia de dois mil elos e desceu até o ponto exato da criação do mundo (òrun àkàxò). Em seguida, ainda pendurada, jogou a terra e mandou que a galinha de cinco dedos a espalhasse; determinou que o pombo a semeasse e fez com que o camaleão, com sua prudência, colocasse pé ante pé e fosse verificar se a terra estava segura e firme. Aí sim Odudua pisou no mundo. Sua primeira pegada é chamada de esè ntaiyé Odùduà.
Odudua fundou desta forma a cidade de Ilé-Ifè, o berço da civilização yorubá, que se espalhou para o resto do mundo.
Só depois disso Oxalá despertou. Olorun delegou a ele a tarefa de criar os seres vivos. E Oxalá criou os homens, as mulheres, as árvores, os peixes e tudo que habita a Terra.
Mas entre Oxalá e Odudua surgiu uma rixa. Olorun, com sua sabedoria, fez mostrar que os dois eram de fundamental importância para a Criação e a sobrevivência do mundo dependeria da harmonia de ambos.
Olorun os convenceu assim a celebrar um acordo (Odù Ifá Ìwòrì-Òbèrè) e chamou Oxalá para sentar à sua direita (òtun) e Odudua para sentar-se à sua esquerda (òsì). Instituiu assim a possibilidade de equilíbrio e de convivência harmônica entre homem e mulher.
Até hoje os yorubás comemoram o dia do acordo através de uma grande festejo anual (ododún sise), celebrando a união que permitiu a sobrevivência do universo e da vida.
Toda esta epopéia durou apenas quatro dias. Para representar a gênese e o útero primordial, os yorubás utilizaram o igbá-odù (ou igbádù): uma cabaça pintada de branco, cortada horizontalmente ao meio em duas metades que devem manter-se sempre unidas, contendo em seu interior quatro pequenos recipientes de casca da noz do côco cortado ao meio contendo, cada qual, com um elemento que simboliza os três sangues do axé: o efun (branco), o osún (vermelho), o carvão (preto) e ainda lama (matéria-prima do homem). Esses elementos significam também os quatro odus principais: Eji Ogbé, Òyèkún Meji, Ibara Meji e Edí Meji. Separar as duas metades de igbadu, significa a própria destruição do mundo.
A parte de cima de igbadu representa Oxalá, e a parte de baixo, Odudua.
Nesta época, o orun (òrun), o céu, não era separado do aiyê (àiyé), o mundo, e homens e deuses transitavam livremente entre os dois mundos.
Havia um camponês que morava exatamente no limite entre o orun e o aiye. A mulher dele era estéril. Este homem rogou muito a Oxalá que a mulher dele pudesse parir. Oxalá o atendeu e a mulher do camponês deu a luz a um menino. Contudo, Oxalá decretou como interdito que aquele menino jamais deveria ultrapassar os limites da terra, nunca podendo ir ao orun.
O camponês ensinou a proibição ao menino e tomava todos os cuidados para que o garoto nunca conhecesse o caminho que ligava os dois mundos.
Mas a curiosidade e a rebeldia foram maiores. Certo dia, o pai teria que entregar umas sementes no orun. Encheu um saco, o pôs nas costas e começou a trajetória. O menino esperto fez um pequeno furo no saco de sementes e assim ficou conhecendo o caminho do orun ao aiye.
No dia seguinte, seguiu o rastro e chegou ao orun. Não só descumpriu o interdito, como desafiou os deuses, se dizendo mais esperto e contando vantagem.
Oxalá ficou irado, pegou seu cajado e naquele momento separou o orun do aiye. Limitou assim o espaço dos homens e dos deuses, impondo uma nova ordem e uma nova relação entre homens e as divindades.
Entre o orun e aiye formou-se um vão, que foi preenchido pelo sopro de Olorun, dando origem à atmosfera (sánmò). Este vão possui nove espaços, sendo quatro superiores () e quatro inferiores (òrun isalè mérèèrin), postando-se a Terra no espaço central.
O menino transgressor chamava-se Exu. Exu foi aquele capaz de criar o caos e recriar a ordem universal.
Márcio de Jagun
Babalorixá, escritor, professor universitário, advogado e apresentador do Programa Ori (ori@ori.net.br)
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