O SACERDÓCIO:
No Candomblé não existe uma liderança suprema. Cada Ilê possui seu líder espiritual (Babaloriá,ou Iyalorixá) totalmente independente em seus poderes e decisões dentro daquela comunidade (egbé). Todavia, nas Casas mais tradicionais, estes líderes têm um compromisso com a manutenção das tradições litúrgicas utilizadas nos rituais. Ainda assim, o compromisso é moral e não legal. Não há qualquer tipo de sanção, ou punição ao qual possa ser submetido o sacerdote que descumpra esse princípio. Daí a grande dificuldade de se evitar modificações que deturpem a Religião.
Não há uma identidade clara em torno do papel do sacerdote. Uns se identificam como zeladores dos Orixás; outros como líderes religiosos da Comunidade; mas o sacerdócio no Candomblé reúne essas atribuições e outras tantas a mais.
O sacerdote de Candomblé é, antes de mais nada, um guardião das tradições africanas que foram para cá trazidas e finalmente moldadas através dos tempos, do sacrifício e da Fé, até ganharem corpo. O corpo da Religião. Manter o sentido do ritual é uma tarefa de resistência cultural. Desempenhar bem seu papel é valorizar a sabedoria e o esforço de milhares de homens e mulheres, que durante séculos apuraram e depuraram sua capacidade de interagir com as forças da natureza.
No exercício de suas tarefas, o sacerdote é também aquele que intermedia os homens, seus mitos, seus deuses e seus destinos. Para isso, o sacerdote precisa de sabedoria e fé. Precisa agir com precisão e não com ilusão, orientando os membros da Comunidade na busca do seu equilíbrio.
O sacerdote como um pai, tem a função de conduzir, proporcionar oportunidades para que seus seguidores ganhem experiência; deve formar padrões de moral, de ética e de educação religiosa. Mas como o Candomblé é uma Religião vivencial, o conhecimento é proporcional à capacidade de interação, de dedicação e de esforço de cada integrante do egbé.
Exercer o sacerdócio não é vender amuleto, nem promover iniciações em quantidade, sem ter o cuidado de preparar verdadeiramente os iniciados. Ser sacerdote, é antes de tudo, funcionar como orientador espiritual das pessoas. O sacerdote não é poderoso, nem mágico. Não pode mudar o futuro. Não pode alterar o destino, nem garantir benefícios na vida de ninguém (nem mesmo na sua). Ele é o moderador. O que consulta os deuses e prepara as pessoas. O sacerdote realiza e sacraliza essa relação.
Reproduzindo a tradição dos africanos, independente de sua idade cronológica, o sacerdote assume o maior posto na hierarquia do egbé e passa a responder como o mais velho da Comunidade. É sua a responsabilidade manter a harmonia no egbé e deste com os Orixás. E isso se faz não apenas através de ebós, mas de orientações e ações.
O sacerdote remonta o próprio soberano daquela Comunidade. É o primeiro a ser servido e o dono da palavra final. Ms jamais deve se considerar o dono da verdade. O sacerdote é o administrador do Ilê, cargo indicado pelos próprios deuses. Mas não deve se comparar a um deles. Não pode subjugar a vontade deles ao seu bel prazer, pondo em risco o equilíbrio das forças e a própria ordem natural das coisas. Razão pela qual o sacerdote deve recorrer sempre ao Oráculo para as decisões mais relevantes. Ele é um executor, e não um criador.
Para ser sacerdote, é preciso antes ter sido iniciado e cumprir o prazo necessário à sua preparação. E para celebrar novas iniciações, precisa exemplificar em seu dia-a-dia todos os valores ensinados durante a iniciação aos neófitos: humildade, determinação, amor e submissão à vontade dos Orixás. Sem isso, ou ao menos sem se esforçar nesta direção, o sacerdote não será um líder, mas um simples mandão, que pode vir a ser obedecido, mas não respeitado.
Reza a lenda que Obatalá, o Senhor da Vida, ciente de que era necessário criar uma forma de manter unidos Homens e Deuses, determinou a Oxum que encontrasse um homem com características especiais para que ela ensinasse todos os segredos e mistérios dos Orixás, preparando-o para ser então o primeiro sacerdote do culto.
O escolhido tinha que ter honestidade, dedicação, sinceridade, respeito à natureza, amor ao próximo, paciência, desapego aos bens materiais e muita fé.
Oxum recorreu então a Orunmila para que este consultasse o Oráculo e a orientasse a encontrar este ser.
O Odu que apareceu foi Osáyekú. Deduzindo o signo, Orunmilá disse a Oxum que esse humano existia e que poderia ser encontrado na Cidade de Oxogbô. Esclareceu tratar-se de um menino nascido há apenas sete anos, que era filho de um caçador com uma mulher de descendência nobre.
Oxum mandou então um mensageiro a procura do garoto, instruindo-o a explicar tudo aos pais, pedindo para trazê-lo a fim de que fosse feita a vontade de Obatalá.
Dias depois o menino foi trazido à Deusa das Águas Doces. Durante sete anos, Oxum ensinou-lhe os axés dos Orixás, suas forças, como agradá-los, como invocá-los, como apaziguá-los, e tudo mais.
Ao final desses sete anos de preparação, Oxum avisou a Obatalá que a tarefa estava completa. Fez-se então uma grande festa e o menino recebeu das mãos do próprio Obatalá uma cabaça que continha diversos pós e segredos, para que com eles pudesse unir novamente os Homens aos Deuses.
O menino ganhou então o Ade Iká (a Coroa do Poder) e transformou-se em um sacerdote, obtendo o cargo de Babalorixá (Pai que Possui os Orixás).
Márcio de Jagun
Babalorixá, escritor, professor universitário, advogado e apresentador do Programa Ori (ori@ori.net.br)