A Degradação da imagem de Esú, parte 3.

A degradação da imagem de Esú
Parte 3

– degradação dos arquétipos nesse encontro de divindades africanas e santos católicos, encontro em que os primeiros são colocados sob a tutela ou a dimensão dos segundos, os arquétipos relacionados a cada orisa terminam por degradar-se e até, muitas vezes, prostituir-se, num processo pleno de foco permeado pelos referenciais da moral católica. Assim, quando possível, despoja-se os orisa de suas características de vitalidade e sensualidade; quando não, coloca-se sua dimensão num quadro pré-conceituoso e moralista que altera profundamente o espaço que ocupam e o papel que desempenham no âmbito de uma cosmovisão rica e completa. Nesse processo, sem dúvida deliberado, de retirar dos escravos o suporte religioso e cultural capaz de assegurar-lhes a resistência efetiva à dominação do espírito, os orisa foram deformados e tornados pequenos. Exemplo? Esu.

Quem é este homem das encruzilhadas, muitas vezes bêbado, sempre malandro e disposto a desviar os homens dos perfeitos caminhos? Quem é essa figura diabólica, instrumento do mal, tão próximo dos homens pecadores? Quem é essa imagem de satã, inimigo de deus e terror dos homens de bem? O andarilho, o avesso à ordem e às estruturas? Aquele ser perigoso, sempre disposto a colocar o mundo em perigo e virá-lo de cabeça para baixo? É este mesmo esu que é o senior entre os orisa? É este mesmo esu que é o líder dos orisa? O primogênito do universo, a primeira estrela a ser criada? A criança querida de olodunmare? Porque é exatamente assim que esu é chamado em muitos itan do corpo literário de ifa, estrutura do conhecimento oral depositária da revelação da religião, conjunto riquissimo de conhecimentos esotéricos e registros históricos da milenar tradição de alguns povos africanos. Inspetor de olodunmare, desde o princípio dos tempos; o porteiro de deus. Esses são mais alguns de seus títulos na essência da nossa religião. É este esu que eu conheço. Aquele de quem dizemos: esu odara, aquele que abre os caminhos e que atrai a prosperidade. Ou mais, é esu que apoia incansavelmente seu filho.

Quando entramos em contato mais profundo com as rezas, as louvações e saudações feitas a esu somos remetidos, necessariamente, a uma análise mais profunda do orisa esu do que aquela que costumamos encontrar nas oportunidades em que assistimos pessoas falando sobre ele. Somos remetidos à uma visão de esu enquanto guardião e fiscalizador de tudo e de todas as coisas dentro da criação. Sua íntima associação com o criador, como aquele que trabalha ao seu lado, é transparente nos títulos com que é nomeado. Podemos inferir, por eles, que esu garante o andamento ou o desenvolvimento do projeto de olodunmare para a criação, assegurando a continuidade e a dinâmica de todos os processos com vistas a primazia da ordem em todas as realidades.

Confirmando este enfoque, podemos nos remeter a que: a caminhada de cada homem, o trabalho e os deveres de cada divindade estão sob regular controle de olodunmare e “relatórios” lhe são feitos periodicamente. Nessa função aparece esu, seu inspetor geral… Olodunmare executa seu projeto através de seus ministros, assiste e acompanha sua obra, objetivamente define seus princípios e seu movimento. E mais, através de seus ministros faz acontecer, regula, acompanha, corrige e mantém seu projeto. Seus ministros, especialmente ela omo osin, orunmila e esu, os demais orisa, são sua extensão e maneira como exerce sua onisciência, sua onipresença e sua onividência na sua obra.

Em um itan do odu ose-otura encontramos esta questão claramente colocada quando vemos que orunmila quando chegou ao orun (mundo invisível) para descrever à olodunmare o que estava se passando na terra, lá encontrou esu odara que, aos pés de olodunmare, fazia seu relatório. Desta forma, quando olodunmare recebeu orunmila, ele já conhecia os problemas que se passavam na terra com os orisa. Para cumprir efetivamente seu papel, esu está presente em todos os espaços, está junto a cada ser vivo, forma “um” com cada divindade ou orisa. Assim também está presente nas cidades, nas vilas, em cada rua e em cada casa, exercendo seu papel enquanto princípio dinâmico, de comunicação e individualização de todo o sistema. Mais que isso, esu são os olhos, os ouvidos e a presença de olodunmare em todo o universo.

Dois itan, em especial, nos contam sobre esu. O primeiro, narra que, no princípio dos tempos nada existia além do ar. Olorun era uma massa infinita de ar que quando começou a movimentar-se, lentamente, a respirar, levou uma parte do ar a transformar-se em massa de água, originando orisanla, o grande orisa funfun. O ar e a água moveram-se conjuntamente e uma parte transformou-se em lama. Dessa lama originou-se uma bolha, a primeira matéria dotada de forma, um rochedo avermelhado e lamacento. Olorun admirou essa forma e soprou sobre ela, insuflando-lhe seu hálito e dando-lhe vida. Essa forma, a primeira dotada de existência individual, um rochedo de lacterita, era esu – esu yangi. Por esse itan depreende-se que esu é o primeiro nascido, o primogênito do universo. É também assim o terceiro elemento, aquele nascido da interação entre ar e água e, assim, orunmila, em um itan do odu otura meji que fala da vinda de ori para a terra, chama esu de a terceira pessoa.

O segundo itan, este do odu ogbe owonrini, relata a multiplicação ao infinito de esu yangi por ação de orunmila, em um processo que permitiu que esu povoasse todo o universo e definiu-lhe condições para exercer o papel de inspetor geral. Ao mesmo tempo, conforme o itan também relata, esse processo gerou o contrato entre orunmila e esu que define para esu o papel de “executor” dos projetos e “controlador” dos destinos, aquele que garante o cumprimento das prescrições de ifa/orunmila. Esu yangi é chamado pelos iorubá esu yangi – oba baba esu, ou seja, esu yangi, rei e pai de todos os esu.

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