A FÉ: Texto de Pai Marcio de Jagum

A FÉ:

A fé é a ferramenta fundamental de qualquer credo. Sem fé não há religião alguma. É através da fé, que o Homem encontra o caminho para interagir com o divino.

A fé é o mecanismo que dá sentido à vida e à morte. Sem fé não há equilíbrio, não há superação, não há compreensão, não há doutrina, nem dogma. Digo: sem fé verdadeira. Porque simples momentos de fé, não fazem do Homem um ser crente em sua religião. Lampejos de fé, ou uma fé titubeante, insegura, desconfiada, tímida, são perceptíveis nos Homens reticentes, diante de situações críticas.

Quando se perde um ente querido, quando se tem um amor frustrado, um sonho desmanchado, a fé propicia conforto e serenidade.

A fé não é ópio. A fé é estado de espírito. A fé resume todo um sistema religioso, filosófico e cultural.

Religiosidade se ensina. Fé, não. Os pais normalmente levam seus filhos ainda pequenos aos seus locais de culto. Os ensinam rezas, cânticos, princípios religiosos. Apresentam seus deuses de devoção. Mas nenhum filho terá a fé igual à de seu pai, ainda que professe o mesmo credo. Pois a fé é resultante das experiências acumuladas, do temperamento, do meio social e sobretudo da espiritualidade de cada um.

Crer no seu deus, é mais do que crer na sua religião. Porque as religiões são falhas, pois foram feitas e são conduzidas por Seres Humanos, que por sua essência e condição, são falhos. Mas a fé, não. A fé, talvez um dos mais subjetivos sentimentos, é capaz de socializar o Homem com o divino e o Homem com aqueles que estão em torno de si. A fé integra, a fé preenche, a fé dá significado às coisas.

Os Homens que têm mais fé, são mais fortes, mais resistentes. A fé é determinação, convicção, certeza. Mesmo em momentos da vida, ou diante da morte, quando não se entende bem o porque das coisas, dos acontecimentos, a fé paira acima do problema. Podemos não compreender o fato, mas a fé nos dá a certeza de que mesmo as situações difíceis servem para nosso amadurecimento espiritual. E o amadurecimento espiritual muda a relação com a vida material.

Na nossa Religião, temos fé de que escolhemos nosso orí (nossa cabeça) e assim nossa personalidade, nosso jeito de ser. Da mesma forma, temos fé de que escolhemos nosso odù (nosso destino) aos pés do Criador (Ọlọ́run). Portanto, o que somos e o que encontramos na vida, são resultantes de nosso livre arbítrio e do amparo divino. Nunca estamos, nem estaremos sós.

Nossa Religião nos ensina que a vida não se encerra com o falecimento do corpo. Nosso espírito sobrevive ao toque de Ikú (a morte). E nossa existência não se resume a uma única experiência, mas a ciclos reencarnatórios denominados àtúnwá, através dos quais passamos por experiências diferentes acumulando sabedoria e depurando nosso caráter (ìwà).

Sabemos que nossos antepassados (ésà) e nossas divindades (Òrìṣà) nos acompanham durante nossa existência nos protegendo, amparando, intuindo.

Os ritos e liturgias propiciam o entrosamento e o equilíbrio entre nós e nosso íntimo, assim como entre nós e nossos deuses.

A fé nesses princípios proporciona nexo e tranquilidade em nosso cotidiano.

Mas a fé não é “verdade absoluta”. A fé é subjetiva. Cada um sente fé a seu modo, ainda que creia no mesmo deus e siga a mesma religião.

As práticas religiosas são sempre padronizadas, mas a maneira como cada Ser absorve, percebe, sente a fé é absolutamente pessoal, íntima.

Ter mais fé do que os outros, às vezes indica lideranças, sacerdotes, referências. Mas, ter mais fé do que os outros, não pode dar aos líderes, aos sacerdotes, nem às referências, a pretensão, a soberba de se sentirem mais perto de deus, maiores conhecedores das virtudes, maiores dominadores dos ritos, mais amados por deus, mais poderosos do que os outros Seres. Não pode fazer com que eles se sintam “donos da Verdade”.

Ter fé é ter certeza. E ter certeza faz o Homem humilde, calmo, embora vibrante. Aquele que se sobrepõe, se expõe, se desentende, é inseguro ou vaidoso de mais ao ponto de se achar insuperável, insubstituível, o mais importante, o salvador da Humanidade.

Dividir essa certeza, às vezes pode consolar. Dividir essa certeza, às vezes pode esclarecer. Mas a fé não se impõe. Portanto, a fé que temos deve ser respeitosa. Nossa fé, deve entender também a falta de fé alheia, sem que achemos o outro menor, ou digno de pena.

No Candomblé, acreditamos que descendemos dos nossos Òrìṣà. Por isso nossa Religião não pressupõe a conversão, mas o encontro. Ou a pessoa se encontra no Candomblé, ou nunca será um candomblecista. Poderá ser um admirador, um frequentador, um simpatizante e até mesmo um defensor. Não há conversão numa Religião de culto ancestral. Ou está no DNA, ou não está. Nossa fé brota, corre nas veias, pulsa no coração a cada batida que soa nos atabaques que vibram ao ritmo dos nossos deuses.

O Homem de fé, não precisa bradar aos ventos, nem aos outros Homens o quanto ele crê. Às vezes, sua missão de fé é ouvir, sem falar. É dividir a dor, sem mesmo consolar. É estar junto, é ser solidário, respeitando o sentimento e a convicção alheia.

Ter fé, não nos dá direito de menosprezar, nem de querer converter o outro a pensar, e muito menos a sentir como nós. Ter fé faz com que nos sintamos bem. E às vezes é quase um ímpeto querer que o outro desfrute do mesmo bem estar. Mas é preciso respeitar o momento de cada um. Quanto tempo demoramos para encontrar a nossa fé? Porque encontramos nossa fé hoje, devemos impor ao outro que descortine a fé nesse mesmo momento e do mesmo modo que nós? Fé também é gosto. E gosto não se discute.

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Márcio de Jagun

23/12/13

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