A Moralização de Yemanja e a invenção da pomba gira

(parte final)

Texto enviado pelo nosso irmão e leitor Macrio Couto. A quem damos todo o crédito deste material.

É mulher bonita, atrevida, guerreira. Põe o mundo de cabeça para baixo. Ofende e transforma o xingamento em doce. Assume a quimbanda para iluminar a umbanda. Sua morada são as encruzilhadas do cemitério. Cheia de vida, é a própria rainha da morte. De acordo com Molina Maria Padilha já viveu diversas encarnações neste planeta, “é conhecida e chamada na umbanda e na quimbanda como um exu-egum, quem vem a ser espírito de morto”. Resulta curioso esse típico processo do sincretismo, que cristaliza na mesma representação um orixá nagô e um espírito ancestral, para designar uma entidade feminina.

Sabe-se que o culto tradicional dos Egungun é estritamente masculino, desde que Oxalá roubou de Nana o poder que tinha sobre os mortos. Nessa ordem de idéias, parece que Maria Padilha de alguma maneira vem a resgatar o antigo poder terrível das Iyá mi. Tal como Nana fazia antigamente, quando castigava os maridos faltosos, mandando os Eguns assusta-los. Maria Padilha hoje avisa (jogo muitos Eguns em cima de vagabundos).

O poder total, completo, ambivalente das Iyá mi parece ressurgir nas proclamações de Maria Padilha: (sarava menino exu sarava minha estrela sarava meu garfo e a minha caveira sarava a menga grande que há de correr do inimigo). Os aspectos fálicos são claramente assumidos, a ligação com a morte também, e a menga, o grande fluxo de sangue em que se esvairá do inimigo, alem de sua expressão explicitamente guerreira, parece afirmar que no sangue que corre é que reside o verdadeiro poder da mulher. É como se assentíssemos ao retorno do reprimido. Todas as representações moralizadas, todas as representações dos aspectos concretamente sexuados do poder feminino voltam nessa figura selvagem da rainha das encruzilhadas.

Diz uma informante de Trindade que: (pomba gira morava na freguesia do Ó. Ela se revoltou contra a situação da mãe dela. Matou quatro homens e castrou um deles. Matou os homens que exploravam a mãe dela. Acabou na prostituição). Nessa pura criação do imaginário popular, a figura da mãe prostituta somente pode ser resgatada pelo sacrifício do poder masculino. Assim como para as Iabás da espada matam-se bichos machos castrados, pomba gira teve de castrar e matar para libertar a mãe. Mas, no mundo patriarcal, na e permitida a livre expressão do poder feminino e, em conseqüência, ela acabou se tornando prostituta.

A figura da pomba gira, ao mesmo tempo em que afirma a realidade da sexualidade feminina, devolve-a ao império da marginalidade. Seu reino e a encruzilhada, a praia, a soleira da porta que compartilha com exu, mas seu território privilegiado é na verdade o cemitério. Além da clássica ligação entre Erro e Tanatos, essa preferência parece aludir as características próprias do cemitério como lugar de ausência e presença, situado dentro e fora do tempo, espaço liminar por excelência onde a rígida ordenação das sepulturas mal consegue disfarçar a intolerável desordem da morte. Sabe-se, que todas as margens são perigosas e também carregadas de imenso poder. Pomba gira, rainha da marginalha, tem sua morada no corpo das mulheres, nos lugares de passagem de um ponto para o outro ou deste mundo para alem. Maria Molambo mais especificamente, assume as claras a ligação com aquilo que a sociedade rejeita para a periferia.

Chamada também de pomba gira da lixeira, recebe despachos arriados nas bordas dos depósitos de lixo, local onde fica rondando. Um de seus pontos mostra que ela também esta ligada aos espíritos dos mortos, o que viria a sugerir alguma semelhança (desagradável, ainda que inevitável) entre deposito de lixo e cemitério. Maria Molambo, tal como suas irmãs, reúne em si a sujeira, a escuridão, a desagregação a presença da morte. Seus trabalhos são de demanda, isto e, de magia destinada a fazer o mal. Parece que nesse ponto, reencontramos os atributos das velhas feiticeiras que bastam a si próprias, e por isso são tão perigosas.

Mas enquanto as Ajé aquela parte obscura e indômita que, por assim dizer, sobrou quando Iyá mi se foi personificando em divindades diversas o povo da pomba gira, em sua multiplicidade, religa sexualidade ativa e feitiçaria. Na umbanda branca afirma-se a imagem etérea de Yemanja, mãe pura e luminosa, mas logo atrás perfila-se sua contra-partida, dançando despudoradamente, soltando gargalhada, trabalhando tanto para o bem como para o mal, e, deste modo desempenhando papel de reativação da própria umbanda, para a qual “muita luz e força tem para dar”.

Respostas de 11

  1. Bom dia Tomeje, tudo bem? Como tem passado?
    Li todas as partes sobre o post ‘A moralização de Yemanja e a invenção da pomba gira’. Gostei muito do conteúdo e realmente creio que é algo a se discutir, a se pensar. Vale mesmo serem feitas mais pesquisas sobre este assunto. Afinal de contas, nas minhas andanças por alguns candomblés, percebi que as pombas giras são mais comuns dentro de casas ketu do que eu imaginava.

    Embora algumas delas (das casas que conheci) toquem para estas entidades apenas uma vez ao ano, ela está presente.
    Particulamente, são entidades que evito ter contato puro e simplesmente por não entender certas coisas que eu ainda não tenho respostas, como exemplo a forma de se apresentar, ou o que as próprias cantigas dizem, aquele ar “assustador” em festas de exus em geral, etc. Honestamente, não sei dizer se é até mesmo um certo preconceito ou simplesmente uma falta de preparo da minha parte, já que nunca procurei estudar muito sobre.

    Enfim, de minha parte creio que há alguns questionamentos sobre o real sentido destas entidades!

    Abraço Tomeje!

    1. Alex! Que bom seu retorno, eu estou na correria de abertura de uma Casa de Axé, era mais fácil ser só filho rsrsrsrsr. Sobre seu questionamento e reflexão, eu penso que um dos problemas graves da nossa religião está no baixo grau de escolaridade da maioria dos nossos líderes/zeladores/pais e mãe de santo. É certo que muitos dos que frequentam nossas Casas de Axé, já chegam com idéias deturpadas e folclorizadas e até mesmo preconceituosas a cerca de nossa cultura, e neste bojo eu englobo todos os segmentos, não apenas o candomblé, isso se também na umbanda. A falta de conhecimento e cultura básica até mesmo do portugues tem causado leituras e interpretações equivocadas de textos ou assuntos de nossa religião. Cabe ao dirigente corrigir estes descaminhos e dar a orientação correta e responsável aos nossos irmãos levando sempre em conta que a obrigação de cada dirigente é zelar pela religião e não apenas pela sua própria Casa. O problema é que a formação geral da maioria dos dirigentes ainda é muito insatisfatória, a maioria, infelismente, não conheçe o básico de religiosidade e se aventuram em ser pais e mães de santo sem o conhecimento necessário de tantos campos da educação, boas maneiras, psicologia, trato, humildade e oratória e tantos outros requisitos indispensáveis ao exercício do sacerdote, apenas reproduzem “fórmulas” e receitas que ouviram falar ou que simplesmente inventaram. A prostituição e demonização da pombagira é um fato em muitas Casas, e isso se dá por motivos variados, desde desconhemento liturgico até o puro fetiche, tirar partido e beneces desta suposta “manifestação”. Por isso vemos pombagiras cantando homens, falando de maneira inapropriada e se comportando como se fossem vulgares. A função destas entidades é outra, Elas deveriam ser muito mais respeitadas por aqueles que as imitam em transes imaginários e vulgares. Tudo isso para te dizer que este culto tem um lado sério e respeitoso, e que que devemos tratar da mesma forma como tratamos todos os demais cultos. O problema é que nem todos veem desta forma e preferem se esconder nestas manifestações ridículas e que só servem para sujar nossa imagem religiosa. Desculpe o desabafo mas eu tive o prazer de conheçer entidades sérias e honestas em diversas Casas, por sso eu não concordo com estas verdadeiras exibições de vulgaridade em outras. Axé, Tomeje.

      1. Tomeje, todos os dias eu olho o blog para verificar se há um novo post, ou simplesmente para ler as perguntas/respostas das outras pessoas. Fico feliz que hoje em dia vejo varios nomes diferentes realizando perguntas ou dando suas opiniões no blog. Isso demonstra os frutos que o trabalho serio de voces estão proporcionando.

        Imagino que ser filho, realmente é muito muito mais facil! rs. Vejo a correria na minha casa. Realmente, ser sacerdorte não é mesmo para qualquer um! rs. No dia em que eu tiver a oportunidade de ir ao Rio de Janeiro, sua casa com certeza será parada mais que obrigatória! Fui uma unica vez a trabalho, e não vi nada além de escritório e hotel! rs.

        Com relação ao que vc me disse sobre a sua visão sobre o culto as pombagiras, me abriu os olhos para que eu olhe com mais cuidado e respeito aos povos da rua em geral. Lembro que quando criança, conheci um Tranca Ruas em uma Umbanda, muito diferente dos que vejo hoje em dia. Aquele que conheci no passado, nem mesmo um sorrizinho dava. Focava 100% nos trabalhos e tal, de forma totalmente seria.
        Enfim, preciso mesmo estudar e observar com mais cuidado!

        Abraços

        Alex

        1. Alex, eu penso que as Casas deveriam olhar para traz e rever seus caminhos. estamos vivendo uma época de verdadeiros modismos e invenções, pareçe que a religião, para alguns, virou um mercado que precisa ser constantemente abstecido de “novidades”. Eu já sou até de pombagira dando ilá, e que algumas pessoas se denominam de “fulano de pombagira”, como se esta entidade pudesse ser feita na cabeça de alguém. A falta de estudo tem levado muitos ao camimho fácil, mas sem volta, da invenção e da medilcridade. Por outro lado, o execesso de livros e apostilas que “revelam” os segredos tem nos causado problemas também, o Babá google está aí para todos acessarem e tirarem suas dúvidas, e as Casas de Axé tem sido deixadas de lado no quesito aprendizado, as pessoas querem tudo rápido e fácil e buscam informações em becos e pessoas de conhecimento duvidoso, não querem mais o tempo de abian, não acham “justo” ficar limpando galinha e aprendendo com os ouvidos, querem ser egbamis antes do tempo. E isso se dá também com estas supostas manifestações de entidades vulgares e que não sabem se comportar, são apenas sombras doque na realidade é uma Entidade firme e bem doutrinada. Precisamos discutir esses problemas com mais profundidade e seriedade nos terreios. Grande axé, Tomeje.

  2. Olá meu Senhor, espero que esteja em paz e bem com todos os seus; como sempre respostas firmes e objetivas, sem rodeios, um grande abraço e felicidades.

    1. Olá Marcio, bom dia. Eu creio mesmo que precisamos discutir o candomblé com mais profundidade, ms sempre respeitando os limites dos muros de cada Casa de Axé, para mim, é dentro dos Axé que temos a melhor informação. É claro que precisamos conhecer o Axé e nos certificar de que se trata de fato de uma Casa de boa procedencia e boa raíz. Mas a discussão precisa existir meu irmão. Axé e volte sempre. Tomeje.

  3. Muito interessante o artigo do meu Xará, Márcio Couto! Legal analisar o entendimento e a dimensão que se dá às Divindades, conforme a influência do meio e do momento histórico.
    Certamente o sincretismo de Iyemanjá com a NªSª católica pode ter influenciado a compreensão da Deusa africana em solo brasileiro.
    Um abraço e parabéns!

  4. Motumbá. Bem, lí as três partes do texto e achei tudo meio confuso. Em parte discordei, em outras concordei… O fato é que teve partes dos textos onde me pareceu que o autor deixava claro que as Pomba-Giras tratam-se de invenções dos terreiros de Umbanda cariocas, por outro lado houveram partes dos textos onde o autor para afirmar a existência real das Pomba-Giras… Sei lá, fiquei um pouco confuso…

    1. Cézar realmente o texto é complexo e deixa margens a dúvidas. Mas a principal função deste texto, na minha opinião, é separar o que é pombagira e umbanda do que é candomblé. Assim também o faz com relação a Yemonjá, muitos tem confundido Yemonjá com a santa católica sincretizada na umbanda. O problema é que estão fazendo uma misturada danada dentro das religião de matriz africana meu irmão. Axé, Tomeje

  5. Aqui onde eu moro, no RJ, já vi até terreiros que diziam se tratar de “Umbandomblé”. Acho que a mistura é prejudicial tanto para o Candomblé, quanto para a Umbanda, pois ambos perdem suas essências, suas raízes e suas tradições. Isso sem contar o que tem acontecido muito por aqui no RJ, que são terreiros de Ketu que tocam Angola, terreiros de Angola que tocam Efon, terreiros de Efon que tocam Jeje e assim por diante… Isso prejudica muito nossa religião, acaba com as nossas culturas e faz as pessoas desacreditarem na religião, ou até acabarem perdendo a fé.

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