A música sacra de Xangô no Brasil, parte 1

MITO, MEMÓRIA E HISTÓRIA

A música sacra de Xangô no Brasil

José Flávio Pessoa de Barros

Este trabalho se insere nas comemorações dos 500 anos de descobrimento do Brasil e objetiva refletir sobre o legado das diferentes etnias formadoras da nacionalidade brasileira. Dentre estas, destacamos a iorubá, que marca de maneira indelével esta cultura.

Foi dado especial destaque às influências originadas das comunidades-terreiro, denominadas candomblé, e que se constituíram como locus privilegiado da manutenção de uma identidade afro-brasileira, contribuindo significativamente para a preservação da memória africana no Brasil.

O candomblé, do nosso ponto de vista, é o resultado da reelaboração de diversas culturas africanas, produto de várias afiliações, existindo, portanto, vários candomblés (Angola, Congo, Efan etc). O descrito neste texto provém principalmente das culturas de língua Iorubá(1) e Fon / Ewe, originárias das regiões da África correspondentes aos atuais Nigéria e Benin. Fruto da síntese decorrente do encontro entre estas etnias e o processo histórico brasileiro, o candomblé jêje-nagô, como é chamado o resultado deste processo de síntese, marca em seus ritos e cânticos uma memória ancestral transmitida oralmente, métodos específicos de iniciação e uma visão de mundo que permite a seus participantes um estilo de vida singular.

Trata-se, portanto, de uma religião de matriz africana, mas especificamente brasileira, da qual podem participar pessoas de todas as origens e cores.

A língua utilizada nos rituais das comunidades-terreiro é um iorubá antigo, litúrgico, como o latim usado nas missas. Os praticantes conhecem o sentido dos cantos e dos louvores, mas não necessariamente o conteúdo de cada palavra. Como costuma ser dito: “esta é a língua falada pelos orixás”.

É nesta língua considerada como ancestral, que são entoados os cantos litúrgicos, que constituem-se em importantes fontes na compreensão dos rituais. Dedicamos especial atenção a estes cânticos como também aos diferentes ritmos que os acompanham, pois julgamos serem eles parte significativa na manutenção da memória africana no Brasil. Esta produção musical foi recolhida, em sua maior parte, nas cerimônias públicas que compõem o calendário litúrgico dos candomblés, sendo regravados sem acompanhamento musical, por especialistas religiosos, depois transcritos em iorubá e analisados por lingüista conhecedor deste idioma.

O repertório das casas-de-santo “é muito expressivo numericamente e em seus conteúdos simbólicos, ao mesmo tempo é funcional, pois a música desempenha um papel importante na manutenção dos grupos religiosos”, segundo Berrague (1976 : 131).

Este mesmo autor, analisando as peças musicais sacras das nações Ketu e Jêje, na década de setenta, afirma que “o repertório é tradicional e parece ter sofrido pouca mudança, se bem que as características de execução foram um tanto transformadas durante os últimos trinta anos”. Avalia as transcrições feitas por Herskovits e outras gravadas durante a década de cinqüenta, informando que seu estudo é parcial, pois abrange somente uma parcela do repertório. Reconhece “um estilo velho, tradicional, que se caracteriza por frases melódicas curtas, repetições constantes com variantes por ornamento e um estilo vocal que consta de falsete e uma qualidade dura e metálica na produção vocal”.

Escolhemos como recorte de análise a “Fogueira de Xangô”, festa em celebração a este orixá, onde procuramos analisar as diferentes referências míticas e históricas inscritas na memória das comunidades, através de seus cantos e da especificidade de seus ritmos.

Esta cerimônia pode ser divididas em duas partes distintas, uma onde é acesa uma fogueira em homenagem a Xangô, realizada na parte externa do terreno, e outra em uma das construções, onde são realizadas as danças e louvações aos orixás, conhecida como “barracão”, que abriga, além da assistência, um espaço destinado à orquestra ritual.

Os instrumentos musicais ocupam um lugar especial neste local, destinado a eles por sua importância. Encontram-se, geralmente, separados do espaço destinado às danças e à assistência, por pequenas muretas ou, mais raramente, por cordas. É, particularmente, um espaço sagrado. Cumprimentado pelos visitantes, quando chegam, e por orixás e iniciados, em muitos momentos do xirê.

A orquestra é comandada por um especialista – o alabê. Trata-se de um título honorífico dos mais respeitados nas comunidades religiosas. Cabe a ele, além da função de entoar os cânticos e iniciar no aprendizado litúrgico os que ainda se encontram em formação, zelar pelos instrumentos musicais, conservar sua afinação, e providenciar as cerimônias de consagração daqueles que, produzindo os sons da música, estabelecem a relação entre os homens e as divindades.

Nas comunidades, a orquestra ritual é composta por instrumentos de percussão, três tambores denominados atabaques; e também do agogô e gã, campânulas de ferro percutidas por baquetas de metal.

Possuem tamanhos diferentes e nomes próprios. O maior deles, de tom grave, chama-se run, o que significa, em iorubá, voz – ohùn ou rugido, grunhido – hùn (Caciatore, 1977 : 222). Outros atribuem a esse nome outro significado, proveniente da língua Fon, e que teria o sentido de sangue ou coração (Lacerda, 1998 : 7). Todas as acepções aludem ao caráter especial que o instrumento possui no contexto religioso. É o responsável pelo solo musical e variações melódicas, e também pelas invocações dos deuses. De som grave, geralmente percutido com uma baqueta de madeira e uma das mãos, é considerado como “o que chama os orixás”, o som que chega ao “orum”, terra dos ancestrais.

Cabe ao rumpi, menor que o run e maior que o lé (o terceiro atabaque), o papel de suporte musical, ou seja, a manutenção constante do ritmo. Os dois, rumpi e lé, possuem a mesma função e são percutidos pelos aquidavis, baquetas de madeira, feitas de galhos de goiabeira (2).

Sustentam uma linha melódica, composta da repetição permanente de um modelo rítmico, relativamente longa. Permitem ao Run as variações musicais que o solo impõe, dando suporte e sustentação à peça musical sacra.

O nome rumpi, em iorubá, significa “hùn” – grunhido/rugido, mais “pi”, imediatamente (Caciatore, 1977 : 222). Indica, assim, a posição que ocupa na orquestra e também na execução musical.

O termo “lé”, que na língua Ewe significa pequeno – “lee” (Caciatore, 1977 : 160), alude, portanto, ao seu tamanho. O som é considerado mais agudo que o do rumpi, de tom médio, se o relacionarmos aos outros dois.

As comunidades-terreiro: o lugar dos sons, palavras e gestos

Nesse mundo de sons, os textos, falados ou cantados, assim como os gestos, a expressão corporal e os objetos-símbolo, transmitem um conjunto de significados determinado pela sua inserção nos diferentes ritos. Reproduzem a memória e a dinâmica do grupo, reforçando e integrando os valores básicos da comunidade, através da dramatização dos mitos, da dança e dos cantos, como também nas histórias (3)contadas pelos mais velhos como modelos paradigmáticos.

As comunidades-terreiro são, como lembra Verger (1997), “os últimos lugares onde as regras de bom tom reinam soberanamente… as questões de etiqueta, de primazias, de prosternação, de ajoelhamento são observadas, discutidas e criticadas apaixonadamente; neste mundo onde o beija-mão, as curvaturas, as diferentes inclinações de cabeça, as mãos ligeiramente balançadas em gestos abençoadores, representam um papel tão minucioso e docilmente praticado como na corte do Rei Sol”, a corte da monarquia francesa mais famosa de sua época.

As regras de convívio são baseadas em etiquetas entre as diferentes categorias de idade, impostas pelas iniciações. O aprendizado é produto da vivência e de um processo iniciático que se concretiza através da transmissão oral do saber. É comum, entretanto, que os mais novos iniciados tenham cadernos (4) onde anotam o que é por eles observado: os cânticos, preces e outras preciosidades recolhidas no cotidiano, contudo, jamais deixam perceber a sua existência, guardando-o em absoluto segredo.

Aprender a cantar corretamente, dançar bem e pronunciar com precisão as diferentes saudações dirigidas aos mais velhos e aos orixás, é o fado a que se submetem os que pretendem conhecer e vivenciar a religião dos deuses africanos.

A transmissão do saber passa dos mais velhos para os mais novos, quando os primeiros reconhecem nestes últimos capacidade e os consideram socialmente identificados com as normas fundamentais do grupo, podendo, desta forma, serem portadores e, por sua vez, transmissores do saber. O conhecimento “vem com o tempo”, dizem os mais antigos. Assim, através de um processo lentamente adquirido, o saber do novo iniciado, encrusta-se no mais profundo do seu ser (Cossard-Binon, 1981 : 139).

A palavra ocupa um lugar especial nas comunidades, a ela é atribuída o poder de animar a vida e colocar em movimento o axé contido na natureza. As intenções, súplicas e o desejo de mudança devem ser verbalizados. É inconcebível pedir aos orixás em silêncio, numa abstração ou recolhimento ensimesmado. Os desejos devem ser pronunciados em voz alta e, sob a forma de prece, entoados. “A fala deve reproduzir o vai-vém, que é a essência do ritmo” (Ba, Hampate, 1982 : 186), para que atinja aos deuses, deve estar em movimento.

O som, assim como a palavra, é importante, pois conduz e proporciona o axé. Acompanhado ou não de instrumentos musicais, possui uma força especial que é zelosamente guardada na memória. O processo e a aprendizagem desses textos (invocações, mitos, cânticos) ocorre de maneira não sistematizada e perdura por todo o tempo de existência do iniciado.

O processo mnemônico é estimulado e os adeptos são capazes de, em pouco tempo, recitar longas louvações ou cânticos. O significado original de cada palavra em iorubá foi perdida pela ausência da interligação prática da língua no cotidiano. Persiste, no entanto, o sentido do canto na mente e na consciência do iniciante nagô, segundo Welch (1980 : 2).

Estes enunciados orais entoados possuem diversas formas de apresentação correspondentes às finalidades a que se destinam no contexto ritual: orikis – evocações, orin – cantos de louvação, adura – preces, iba – saudações e ofó (5) – encantamento das espécies vegetais.

Durante o xirê (6), as comemorações religiosas, estes diferentes estilos podem estar presentes invocando, louvando e saudando os orixás e ancestrais. Porém é nos momentos mais íntimos da comunidade que surgem as histórias que rememoram os feitos dos orixás. São narrativas que estabelecem nexos e distinguem aqueles que podem ouvi-las. Falam da saga dos deuses, das relações destes com os homens, do orum, o mundo invisível, e do aiye, o mundo dos homens.

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