A música sacra de Xangô no Brasil parte 2

MITO, MEMÓRIA E HISTÓRIA

A música sacra de Xangô no Brasil

José Flávio Pessoa de Barros

Os iniciados não precisam conhecer a língua Iorubá na vivência do sagrado. A língua litúrgica é somente empregada nos rituais, especialmente nos cânticos e preces. Os nomes das insígnias, objetos sagrados e louvações e um vocabulário profano reduzido, que circula como um código do grupo, são aprendidos na relação cotidiana com o terreiro. São palavras originadas de uma língua religiosa que Abimbolá (1976) chama de antiga ou fóssil, inscritas na memória do povo-de-santo.

Os textos poéticos compõem uma produção oral de valor inestimável e que necessita ser conhecida pela historiografia brasileira, pois constituem um acervo precioso para o pesquisador interessado e comprometido com a elucidação de questões e temas não contemplados pela história oficial.

Os cânticos dos Deuses

Os cânticos rituais possuem características muito específicas que denotam sua singularidade como forma musical. Estas especificidades podem ser notadas nos padrões melódicos e rítmicos sincopados, isto é, onde percebemos o deslocamento do tempo forte da marcação do ritmo. Também são marcas dessas formas musicais, o canto em estilo responsorial, com a sustentação da tonalidade proposta pelo cantor solista, alabê ou iatabexé, criando uma tonalidade bem definida para a execução. As melodias em escala pentatônica são outro aspecto típico dessas peças musicais, sendo comum a sua ocorrência, tanto na música folclórica, bem como na música popular de origem africana (7) .

O alabê, chefe da orquestra, é um músico iniciado para esta função. O termo derivado da língua Iorubá (Cacciatore, 1977 : 45) significa: ala – dono, agbè – tambor ou cabaça. Geralmente, além do ofício de percussionista é também responsável pelo canto litúrgico. Trata-se de um oye, título honorífico, cujo correspondente feminino, iatabexé, somente executa os cânticos. Raramente encontramos mulheres que toquem atabaques nas comunidades-terreiro. O título feminino significa em iorubá: ìyá – mãe, té – propicia, bè – súplica, se – fazer; isto é, a mãe que faz as súplicas propiciatórias. Estes títulos são outorgados após o reconhecimento efetivo do talento e a pessoas geralmente com muitos anos de iniciação nas categorias equedi e ogã.

São iniciados em seus ofícios e denominados ogãs – os que não entram em transe. Aprendem os cantos e ritmos (8) – “toques “(9) – em longos anos de aprendizado. São empossados após um período iniciático, que termina numa apresentação pública, onde exibem seus dotes artísticos e saber religioso. Após a iniciação, recebem também um nome litúrgico que os identificará para sempre e podem, então, ser reconhecidos carinhosamente como pais, abençoar e serem abençoados.

Esses oficiantes, os músicos, são distinguidos também por todos. Recebem abraços especiais dos mais ilustres visitantes destas comunidades, os orixás, quando executam bem as “cantigas”. Podem também reconhecer sua excelência ao realizar uma coleta em espécie entre os presentes à cerimônia. Eles mesmos depositam esta quantia em frente à orquestra ritual. Os virtuosos permanecem na memória do povo-de-santo, que guarda seus nomes e as suas casas de origem. Recebem sempre presentes, quando convidados a tocar em outras comunidades, e por vezes dinheiro.

O título alabê pode ser subdividido em outras duas categorias. O otun-alabê, o da direita, mais velho em iniciação e saber; e o ossi-alabê, o da esquerda, mais jovem. Esta disposição só poderá ser alterada pela morte de um de seus integrantes.

A percussão do run, privilégio do alabê, somente será concedida a outro no impedimento de seu titular. A senioridade é exercida também em outros momentos. Cabe ao mais velho comandar a mesa que será servida sempre após as cerimônias. A hierarquia, no entanto, é amenizada pelo dever da hospitalidade, quando no convívio encontram-se visitantes, ou ainda, pela generosidade, sempre esperada dos mais antigos.

O canto, ou melhor, o canto coral, que é a forma como as melodias são entoadas, obedece a padrões precisos em sua execução. Pode se apresentar em solo, e depois respondido em uníssono ou, ainda em duo, quando salmodiado em preces.

Geralmente são estrofes curtas, de fácil memorização e de tecitura melódica diferenciada. O solista comanda a execução e produz variações sobre o tema cantado; porém as inovações fora do padrão rítmico são desencorajadas.

O canto é, quase sempre, acompanhado de instrumentos musicais; as preces, embora cantadas, nem sempre. Sua temática é ampla e, geralmente, está associada ao fado humano e à glória dos deuses e ancestres.

O canto sem instrumentos de acompanhamento rítmico é o lugar das preces (adura), das louvações (orikis), das saudações (ibas) e dos encantamentos (ofós).

Dilemas existenciais, como vida e morte, ocupam lugar especial na poética das canções sagradas. Estas músicas sacras falam de heróis civilizadores, de dinastias e lugares sagrados; de alianças e conflitos e da relação com a natureza, vivenciada como lugar privilegiado da experiência religiosa.

Música e poesia exaltam os deuses e conclamam os fiéis a seguirem os modelos dramatizados na voz e na dança. Neste sentido, são melótipos, isto é, louvações declamadas em duo ou solo, tão comuns nas produções iorubanas. A palavra melopéia, de origem grega, tem esta conotação. O termo melodia, que possui radical da mesma origem, está ligado diretamente à expressividade do canto.

As músicas sacras das comunidades-terreiro ultrapassam o sentido do melótipo iorubano, declamatório por excelência, pois são vivenciadas como experiências religiosas transcendentais.

Obedecem a uma seqüência musical inscrita na lógica própria dos mitos, estando tão intimamente associadas que não pode a ordem ser alterada, ligados como partes significativas de um discurso que só é revelado ao seu final.

Os cânticos podem apresentar pequenas alterações no teor da louvação aos orixás e mais raramente em sua estrutura melódica. As alterações na poética são, possivelmente, fruto da influência do português, ou, ainda, distinções propositais utilizadas pelas comunidades-terreiro como marcadores culturais que distinguem as chamadas “nações”.

Variações na estrutura musical, ou mesmo alterações nos cânticos, geralmente estão associadas ao virtuosismo dos alabês (especialistas musicais) para impor um determinado estilo de execução.

Tal fato, no entanto, não constitui uma singularidade do caso brasileiro. Estas alterações foram observadas também na Nigéria pelo etnomusicólogo Welch (1980 : 3), em território iorubá. Segundo este autor, “mesmo na Nigéria de hoje, muitos textos perderam seu sentido exato, e há discrepâncias entre os executantes de uma localidade e outra. Variáveis tais como memória, estado de espírito e as circunstâncias próprias do momento afetam qualquer execução. Os fiéis sabem que o louvor se destina a um orixá particular, pois na prática Nagô a seqüência é ritualisticamente prescrita”.

Merian (1951 : 98), analisando as gravações feitas por Herkovits entre 1941 e 1942, na Bahia, depositadas na Biblioteca do Congresso Americano, em Washington, afirma “os cantos Keto evidenciam padrões africanos… de maneira tão intensa que não deixam qualquer dúvida da relação entre o estilo Keto (Nagô) e o da África Ocidental… a relação parece incontroversa”.

Berrague (1976 : 131) levanta duas hipóteses quanto às diferenças encontradas atualmente no Brasil e na África. A primeira, de que os repertórios nigerianos e daomeanos recentes, tenham evoluído em sentido diferente daquele aqui executado. A segunda hipótese esta ligada à produção musical, que ele classifica como baiana, ter sido produzida localmente, isto é, no Brasil.

Considero que as duas hipóteses de Berrague podem ter ocorrido. O candomblé é um processo de síntese, tendo que ser observado desta forma, não sendo possível encontrar formas puras de uma ou outra expressão musical de origem. Os contextos africanos e brasileiro tiveram influências distintas em sua formação histórica, o que certamente produziu alterações em suas produções musicais litúrgicas.

O acervo cultural trazido destas regiões da África pelos nagô, possibilitou, acreditamos, a recriação de outros cânticos dentro dos mesmos padrões. Conhecemos pelo menos um destes, que fala de uma circunstância particular ocorrida no Ilé Ia Nasô e que será discutido, em uma próxima publicação.

Embora o significado literal da recitação possa ter sido esquecida, pela não utilização cotidiana da língua, o seu sentido persiste na memória do executante das comunidades-terreiro. As melodias fazem parte de um legado cultural expressivo que une a África Ocidental ao Brasil e se projeta, talvez, no aspecto mais significativo da produção musical brasileira. Welch (1980 : 4) reconhecendo a importância deste patrimônio afirma: “Preservou-se uma estrutura musical mental, dentro da qual os cantos nagôs podem ser expressos, e que pode estar existindo na Bahia por nada menos de quinze gerações”.

Esta produção, mais do que falar da antigüidade de uma cultura, expressa uma face oculta de quinhentos anos de história, face que se revela através de uma liturgia expressiva, celebrada nos cânticos e vivenciada em sua plenitude nas comunidades dos terreiros.

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