A VINGANÇA

A vingança, antes de ser um ato, ou atitude, é um instinto. 

Instinto que se aloja em alguns animais (não em todos) e também nos seres Humanos (não em todos).

A vingança é fruto de árvores tristes: da árvore da dor, da árvore da mágoa, da árvore do ódio, da árvore da traição. A vingança, portanto, é um fruto envenenado.

Vingança não é justiça. Vingança não é reparação do dano sofrido. Vingança é agir contra alguém que lhe feriu, na mesma proporção, ou em intensidade pior. Vingança é como um revólver, que é criado para trazer dor.

Apesar de odiosa, a vingança pode acalentar. Ela tranquiliza, ou até ameniza uma dor anterior. Mas ela pode ser precursora de um desenrolar de novos ataques e de uma guerra sem fim. Pois aquele que foi objeto da vingança, pode se achar no direito de revidar, criando assim uma nefasta onda de ataques e vinganças sem fim. Tendo-se como única certeza, que no desenrolar desta luta insana, os dois perderão algo pelo caminho.

Então como se portar diante dos sentimentos que originaram a vingança? Como reagir às ofensas, às mágoas, ao ódio, à traição? O fato de não reagir, não demonstraria fraqueza? A vingança pode justificar a quebra de princípios, como a paz, a obediência, a disciplina, a hierarquia?

Para tratarmos deste assunto, assim como qualquer outro, precisamos nos reportar à condição de religiosos que somos. Qual religião prega o ódio? Qual religião prega a mágoa e o rancor? Qual religião prega a vingança? A resposta é: nenhuma! E o Candomblé, enquanto Religião que é, assim como os candomblecistas, como religiosos que são, devem entender isso e compreender-se como tal.

O grande objetivo do Candomblecista ao cultuar os Òrìṣà, professar a sua fé e seguir seu ritual, é tornar-se um ọmọlúwàbí – filho de bom caráter. Para os yorùbá, o filho de bom caráter é aquele que alcança o equilíbrio, o que não se choca com a natureza, nem com aqueles que estão à sua volta.

Então como um ọmọlúwàbí deve se comportar diante de situações que lhe inspirem o sentimento, ou o instinto de vingança?

Primeiro, é preciso entender que para se pretender ser um ọmọlúwàbí não precisa “tempo de Santo”. Ou seja: não é preciso contar anos após a sua iniciação no Candomblé. Todos os adeptos, dos que ocupam as posições mais simples e iniciais na escala hierárquica, aos que preenchem os postos de maior responsabilidade, devem buscar comportarem-se como ọmọlúwàbí.

Segundo, é necessário alcançar que enquanto o Homem estiver preso aos sentimentos negativos do ódio, da mágoa, da traição, etc., ele sofrerá.

Terceiro, é imperioso interiorizar que “ninguém é dono de ninguém”. Portanto, cada qual é livre para fazer suas escolhas, exercer seu livre arbítrio, trilhar seu destino.

Na maioria das vezes, nossa mágoa, nosso sentimento de traição e o consequente ódio, decorrem da falsa sensação de posse sobre as pessoas e sobre o sentimento das pessoas. Nos esquecemos de que todos somos livres, inclusive nós. Ao nos sentirmos feridos, traídos, apunhalados, muitas vezes nos esquecemos de que por nossas escolhas, lícitas ou ilícitas, acertadas ou equivocadas, também já ferimos, magoamos e entristecemos pessoas queridas, que talvez não merecessem isso. 

Nós não somos perfeitos e aqueles outros Seres Humanos com os quais convivemos carregam o mesmo senso de imperfeição. Assim, sejamos mais maduros quanto às possibilidades de falhas.

Quantas vezes também não somos ingratos e injustos com o próprio Criador? Quantas vezes não o somos com nossos Òrìṣà, Guias e Amigos Espirituais? Se todas as vezes que erramos, fôssemos punidos pela vingança dos deuses, certamente já teríamos sido aniquilados.

Nossos deuses são como pais: nos protegem, nos orientam, nos intuem e nos corrigem. Mas não se prestam a vingarem-sede nós. A correção muitas vezes é punitiva, mas nunca maléfica.

Conceitualmente, os pais biológicos e os deuses têm a sabedoria e o direito de nos punir. Mas nós, enquanto filhos e irmãos de outros Homens, devemos ter cuidado quando nos embrenhamos por este campo.

Existe dose certa para a vingança? A vingança pode ser reparadora? Particularmente penso que não. A punição difere da vingança, assim como a vingança é diferente da justiça. Enquanto a punição tem um caráter instrutivo, corretivo, didático; a vingança se presta simplesmente a um sentimento de raiva. Aquele que se vinga, só quer que seu algoz experimente a mesma dor que o impingiu, ou pior. O vingador não está preocupado que seu algoz aprenda, corrija, repare suas ações. Só quer fazê-lo sofrer. São ações conceitualmente distintas, portanto.

Justiça é a reparação a um dano injustamente sofrido. Vingança é ódio desenfreado. Justiça se faz com cautela e equilíbrio. Vingança se faz com premeditação mordaz, ou com cegueira maléfica. A justiça é reparadora. A vingança é dor pela dor. A Justiça é divina. A vingança é negativa.

Para encontrarmos o ponto certo de agir, a dose adequada do remédio e o equilíbrio dos sentimentos, é necessário antes de tudo recorrermos à nossa própria fé.

Se somos religiosos e cremos de verdade em nossos deuses e princípios, devemos pedir aos nossos orientadores espirituais, aos nossos Òrìṣà que nos mostrem como agir, qual a forma mais sensata, mais justa. Devemos pedi-los equilíbrio para compreendermos aquela situação que nos trouxe tanta mágoa, tristeza, traição e até mesmo ódio. Teremos sido causadores disso por nossas próprias ações equivocadas? Teremos errado de alguma maneira? Estamos sendo realmente injustiçados? Realmente não somos merecedores desta provação? Jamais fizemos algo semelhante a ninguém? Precisamos de reflexão. Uma sincera, íntima e profunda reflexão. 

Se cremos no deus da justiça (Ṣàngó) devemos pedir a Ele que faça a justiça. Não nos cabe agir por Ele. Não somos deuses. Eles próprios, nossos Òrìṣà, enquanto foram Homens, experimentaram todos os sentimentos. Erraram e acertaram. Mas conseguiram um ponto de equilíbrio que os tornou divinizados. Por isso foram escolhidos por Ọlọ́run como seus intermediários junto aos Homens. Porque eles sabem como é ser difícil a condição humana. E eles sabem como vencer tais dificuldades.

É complicado lidar com sentimentos que nos ferem. Nos ferem tanto, que muitas vezes esses sentimentos nos abatem, nos prostram, nos deprimem. Mas são como punhais fictícios que não existem. São lâminas virtuais que não podemos permitir que nos matem de verdade. Todos esses sentimentos ruins como a tristeza, a mágoa, a traição são também lâminas irreais.

É o egoísmo que nos leva a crer que devemos sempre ser alvo apenas de bons gestos, de reconhecimento eterno, de devoção extrema e de lealdade sem fim. Como se realmente fossemos legítimos merecedores de tudo isso…Como se agíssemos assim com tanta perfeição sempre, em relação aos que nos cercam. Como se fôssemos perfeitos e jamais tivéssemos feito por merecer uma mágoa.

Esquecemos que o Candomblé, antes de ser Religião, é uma filosofia de vida. E esta filosofia é pautada em àtúnwá – reencarnação; ciclo de vidas sucessivas; regresso; retorno. A existência gira em ciclos de vidas e as vidas giram igualmente em ciclos de experiências que se concretizam a partir das energias que fazemos circular. Quem promove o bem, encontrará o bem. Quem promove o mal, encontrará o mal. Se você é generoso com a vida, a vida será generosa com você.

Ainda assim injustiças ocorrem. Mas por este ciclo de vida e de vidas, podemos compreender que às vezes são energias negativas que estavam acumuladas em um passado mais distante.

Desta forma, todos os sentimentos bons e ruins que experimentamos, também já impusemos a outras pessoas.

Os algozes deste momento podem ser aqueles que nos apresentam a novas experiências através de momentos tristes; da mesma forma que as pessoas que nos trazem alegrias. Assim, algozes e amigos são catalizadores no nosso crescimento, se soubermos aprender com os fatos.

Mas experiências negativas não podem desmerecer as positivas. Da mesma forma que às vezes somos surpreendidos por tristezas e traições, também somos deslumbrados por alegrias. Não podemos desmerecer as coisas boas e somente registrarmos as ruins.

Pior ainda, é quando religiosos do Candomblé resolvem agir pelas próprias mãos e se arvoram a se vingar valendo-se de ẹbọ do mal.

O mal existe. Os sentimentos ruins que assolam a Humanidade, são chamados de ajogun. Quando nos entregamos a eles, nos distanciamos do nosso objetivo de sermos ọmọlúwàbí.

Ao invés nos vingarmos, devemos silenciar. O silencio é reflexivo, é nobre, é sensato. Devemos fazer desse silencio um retiro pessoal. Diante da crise, a reflexão pode ser boa conselheira. É a partir de uma reflexão sincera e madura, que teremos condições de decidir o que fazer e como fazer. Não para se vingar! Mas para agir com coerência e sensatez. A coerência e a sensatez que se espera de religiosos.

O importante é mantermos sempre a consciência e as mãos limpas.

Calar-se, não é acovardar-se. Não se vingar, não é mostrar fraqueza. Se tem a consciência tranquila, ande de cabeça erguida. Quem tem que se intimidar, se encolher e se constranger, são os que agiram mal. Mantenha a consciência e as mãos limpas. Deixe o tempo agir. Deixe que o tempo mostre à pessoa que te magoou o sabor daquela dor. Tenha certeza de que quando o tempo será mais sábio do que você. Não duvide de que o tempo terá as palavras e as atitudes certas. Bem melhor do que você. Há momentos que não se deve dizer nada, pois seria como falar aos surdos. Há momentos em que o errado se acha certo e o injusto injustiçado. A pretensão, a vaidade e o ódio são capazes de cegar. Mas só o tempo repara isso. Só o tempo encontrará o momento certo de reparar as coisas. O tempo trará experiência, situações e sentimentos que ajudarão a reflexão.

O tempo trabalha sozinho. É metódico, detalhista e paciente. Pode demorar um dia, uma semana, um ano, ou anos… mas o tempo sempre encontrará a forma certa de mostrar quem estavacom a razão e quem estava errado. Tempo sempre achará uma maneira de punir, quem precisa ser punido. Tempo sempre conseguirá fazer com que o intransigente reconheça seus erros e de que o certo se sinta reparado.

Não responder às provocações, muitas vezes será a melhor resposta. Melhor do que perder a linha, a dignidade e a coerência com xingamentos, agressões e demais atitudes incompatíveis com um religioso que quer ser levado a sério e quer levar a sério sua religião.

Ao invés de se vingar, ignore. A indiferença éum ótimo remédio para os pretensiosos, invejosos e desleais. Dê a eles não a outra face. Mas a face da insignificância pública que eles merecem.

Triste é quando alguém que busca vingança procura um sacerdote do Candomblé para exercê-la. Mais triste, é quando o próprio sacerdote se acha no direito de se vingar e age com suas próprias mãos invocando forças negativas para esse fim. Que exemplo está dando? Que religião está professando? Que contribuição está dando para o Candomblé? Terá ele condições de fazer o bem, com as mesmas mãos que agiu para o mal? 

Ninguém procura um padre, um pastor, ou um rabino pedindo para se vingar de um semelhante. Por que procuram sacerdotes do Candomblé? Por que nos prestamos a isso?

Muito do preconceito acumulado contra o Candomblé, se deve a esses maus religiosos que vendem sua consciência por dinheiro e distorcem nossa religiosidade para se mostrarem “perigosos”.

Candomblé não é isso. Não precisamos disso. Ninguém tem o direito de se arvorar a fazer mal, ou a matar. Um sacerdote verdadeiro não se presta a isso. Os sacerdotes são humanos, portanto são falhos. Mas, como qualquer um, devem também buscar se aperfeiçoar e agir com condutas dignas daqueles que empunham a bandeira de uma religião ancestral.

Rio, 03/5/14

Márcio de Jagun

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