Banquete dos orixás, parte 1.

Pesquisa bibliográfica, entrevistas e elaboração dos textos:  Agnes Mariano / agnesmariano@gmail.com

Um texto para ser apreciado com calma. Com são as boas comidas.

Banquete dos orixás, parte 1.

Olhando para o oceano Atlântico à sua frente, misterioso e intransponível, os primeiros africanos desembarcados no Brasil já sabiam que essa viagem seria sem volta. O jeito foi reunir toda a coragem que os imigrantes – escravizados ou não – sempre têm e recriar aqui um pouco do continente que tinha ficado para trás. Na tradição religiosa que eles trouxeram um dos mais importantes veículos de comunicação com as divindades é o alimento, preparado segundo regras muito antigas e com um sabor digno de paladares divinos. Como, felizmente, orixás, devotos e visitantes podem compartilhar o mesmo alimento, aos poucos, o acará de Iansã, o amalá de Xangô, o omolucum de Oxum, o ebô de Oxalá, o acaçá e dezenas de outras receitas que compõem o banquete dos deuses foram difundidas no Brasil, especialmente na cidade de Salvador e áreas próximas, terminando por se transformar na comida oficial da Bahia. Mas, até hoje, garantem alguns, ingerir algum desses pratos é nutrir-se um pouco da África.

Para agradecer, pedir ou reverenciar os orixás, combina-se música, dança e alimentos, que nutrem e transmitem a energia, o axé. O que os primeiros africanos não poderiam imaginar é que, após alguns séculos, as suas receitas, frutos, temperos, sementes e frutas seriam assimiladas, admiradas e copiadas de tal forma no novo mundo. São originários da África, por exemplo, o quiabo, o café, o dendê, o inhame e a melancia. Outra influência grande foi o modo de preparar as comidas, a forma de cozinhar e de temperar, em alguns casos, através de adaptações dos recursos que encontraram aqui: camarão seco, leite de coco e pimenta-malagueta são alguns exemplos.

Abundância é a palavra-chave na culinária feita na Bahia com inspiração africana. Abundância nas medidas, nos temperos e no oferecimento, inclusive, a qualquer estranho que visite a casa religiosa num dia de festa. Sobre esta impressionante generosidade, o antropólogo e pai-de-santo Júlio Braga explica:

No candomblé, o sentido comunitário é uma noção muito importante. A pessoa que vai até a casa, mesmo na condição de espectador, não é um estranho. A sociedade pensa nele de um modo diferente, ele está comungando. É um projeto de aliança e todos podem participar desse axé. Oferecer a comida não é uma concessão, é um gesto ritual, que deve ser praticado assim.

Para cada orixá, um alimento; para cada cerimônia, uma forma de preparo, um ritual, um conjunto de rezas. Quem supervisiona tudo é a iabassê – que significa “avó, velha que cozinha” – auxiliada pela otum e pela ossi. Para receber o posto de iabassê, é preciso muita experiência, conhecimento, dedicação e já ter passado pela obrigação de sete anos. A guardiã da cozinha deve ser uma pessoa responsável e calma porque, para cozinhar, precisa ter paciência e atenção. “Fazer correndo não dá certo, tem que trabalhar com o coração, com amor. A pessoa muito afobada faz tudo ligeiro e termina não saindo bem”, diz Nídia Maria Santos, ou “Dona Nidinha”, dagã do Ilê Axé Opô Aganju e neta mais velha de Mãe Senhora, que foi uma das mais famosas mães-de-santo do Ilê Axé Opô Afonjá. Uma calma que não pode ser excessiva, pois é preciso “ser um pouco ligeirinha”, acrescenta Dona Nidinha, e também saber liderar, porque cabe a iabassê definir os ingredientes, delegar as tarefas, saber os rituais e “olhar se estão todas trabalhando direito, orientar, porque ninguém nasce sabendo”.

Quando a festa é de grandes proporções, várias filhas da casa podem ser chamadas para ajudar e até os homens dão certas contribuições.

Quando precisa, eu faço, ajudo. Vêm muitas filhas e cada uma vai tendo uma tarefa. Cada uma toma a responsabilidade de uma panela, que fica só com aquela pessoa. É bom, porque é melhor fazer junto: tem a conversa, uma prova o da outra, pra ver se está com o paladar. Assim acaba mais cedo – descreve Dona Nidinha.

Em algumas casas religiosas, são mantidas até formas antigas de preparar os alimentos. “Nós trituramos o camarão no pilão, o coco é ralado na mão e a cebola também”, conta a socióloga Márcia Souza, membro do terreiro do Gantois.

Segundo Dona Nidinha, os homens, sendo da casa, podem entrar na cozinha e ajudar, mas “só nas horas certas, quando precisa: pra pegar uma panela pesada, carregar um saco de cebola. Porque em tempo de festa a gente compra tudo em grande quantidade, pra não faltar”. Em geral, as casas religiosas não fazem questão de manter os antigos métodos de preparo e adotam liqüidificadores e outros equipamentos modernos: “No meu tempo, era a panela de barro, pedra de ralar – uma pedra grande e outra comprida por cima. O ralo comprava na feira, feito de lata de óleo ou doce. O feijão-fradinho pra o acarajé era ralado na pedra. O amalá fazia no fogão à lenha, nas panelonas de barro”, relembra.

Comer os alimentos votivos é uma forma de conhecer a África, seus cheiros, sabores, costumes e, ainda, um pouco da sua história. Dizem os especialistas, como o antropólogo Vilson Caetano de Sousa, em sua dissertação de mestrado Usos e abusos das mulheres de saia e do povo do azeite, que através desses alimentos é possível obter muitas informações sobre o local de origem e a vida dos povos que iniciaram o culto aos orixás. O quiabo, por exemplo, um fruto muito rico em ferro, está ligado diretamente às dinastias de Oyó e Ifé, por isso é servido a poucos orixás – principalmente Xangô, Iansã e Ibejis -, explica ele. A forma como são preparados os alimentos também seria forte indicativo. Orixás ligados a períodos de guerra, instabilidade e migrações preferem alimentos de preparo rápido – crus, torrados e assados -, enquanto aos orixás ligados à terra são servidos principalmente raízes e grãos cozidos e muitas vezes amassados, afirma Sousa.

As adaptações e transformações, contudo, existiram e muitos pratos são realmente afro-baianos, como o vatapá – que apenas se parece como uma comida misteriosa dedicada a Oxum, o ipeté -, o acaçá com leite de coco e açúcar (porque na culinária religiosa ele é feito apenas com milho branco e água), os recheios acrescentados ao acarajé e ao abará e o famoso caruru completo. “Uma amiga minha fez, na Nigéria, o caruru completo e os nigerianos acharam superestranho. Sobrou tanta coisa que ela precisou convidar alguns estrangeiros no outro dia pra não perder a comida”, conta Márcia Souza. Segundo ela, na Nigéria, o acará, que nós conhecemos como acarajé, é muito comum e vendido em lanchonetes, enquanto o abará tem outro nome e leva ingredientes como peixe e outros temperos.

Em alguns poucos momentos, os rituais podem também chegar às ruas. “No presente pra Oxum e pra Iemanjá, as pessoas saem do terreiro em grupo e vão caminhando com os balaios até o lugar da oferenda: a praia, o Dique”, explica Babá Silvanilton, do Ilê Axé Oxumaré. Uma das cerimônias mais impressionantes, para quem já teve o privilégio de participar dela, é a “Águas de Oxalá”, realizada durante a madrugada, onde “todos caminham em silêncio, levando água de uma fonte até o templo”, explica Aílton Ferreira, ogã do Oxumaré. Marcada pela discrição, raramente alguém de fora é convidado para participar dessa celebração. Outro rito que sai dos limites do terreiro é o Sabejé de Obaluaê.

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