Banquete dos orixás, parte 2.

PRODUÇÃO

Pesquisa bibliográfica, entrevistas e elaboração dos textos:  Agnes Mariano / agnesmariano@gmail.com

Um texto para ser apreciado com calma. Com são as boas comidas.

Banquete dos orixás, parte 2.

PURIFICAÇÃO

Caminhando pelas ruas do bairro da Federação com suas batas, rendas, torços e colares, Sandra Ribeiro e Valmira de Jesus parecem rainhas, mas os pés descalços revelam que a caminhada é, na verdade, uma prova de humildade. Sandra de Obaluaê e Valmira de Iansã são duas das várias filhas-de-santo que, nos primeiros dias de agosto, saem às ruas de Salvador com Obaluaê e seu alimento preferido – a pipoca – visitando alguns terreiros e casas. Como tudo no candomblé, a cerimônia envolve vários rituais preparatórios. Pouco antes da ida para a rua, ainda no terreiro, o pai ou mãe-de-santo faz um ritual “que louva a Exu, para que ele limpe os caminhos, as estradas, para Obaluaê, levado sobre o ori (cabeça) das filhas-de-santo”, explica o pai-de-santo Alberto, do Ilê Axé Iaominidê (casa das águas mãe). Um pequeno grupo se reveza nessa cerimônia, simples e bonita, onde cada gesto dançado e verso cantado deve ser preciso e possui um significado específico, mas onde respeito não é sinônimo de sisudez.

Depois do banho de pipoca nos filhos da casa e alabês, que tocaram os atabaques durante toda a cerimônia, o Sabejé de Obaluaê ganha as ruas. É impossível não prestar atenção nas duas mulheres: uma transporta um grande cesto repleto de pipocas, “o duburu, que é uma fonte de energia”, segundo Babá Alberto, enquanto a outra leva o próprio orixá: o seu longo capuz de palha da costa coberto com búzios, sobre uma base. Quando o poderoso Obaluaê passa, alguns vêm correndo para ver, outros só olham de longe e, quem não resiste, para as filhas-de-santo, faz a sua doação em dinheiro ganha um pouco da pipoca.

“Sabejé oro unlá”, cantam as filhas-de-santo nas portas das casas, anunciando a visita importante e o pedido de doação. Apesar dos convites, elas não entram, só conversam um pouco e deixam o duburu. “Atotô, atotô”, vão repetindo, enquanto jogam a pipoca em crianças e adultos que estendem as mãos e abaixam a cabeça para receber melhor a bênção do orixá.

Quem recebe a fonte de energia diretamente nas mãos vai comendo devagarinho e em silêncio. Maria de Santana, 71, contente por ter sido uma das escolhidas para a visita, explica o motivo: “Ele traz coisas boas para minha casa. Quando estou mais aflita, eu peço e a ajuda chega”. Até quem não mantém mais a tradição do Sabejé sabe bem por que o orixá precisa fazer durante sete dias de agosto a sua peregrinação pelas ruas, como Mãe Elza de Oxum, do terreiro Obá Toni: “Quando ele sai à rua é para nos livrar das doenças, das moléstias, leva a cura. É um médico”, explica .

O Sabejé de Obaluaê faz parte das cerimônias para o orixá que culminam com o Olubajé, a sua festa anual. As doações que as filhas-de-santo recebem são, inclusive, usadas nesta cerimônia. “É uma cerimônia com muita fartura, onde a comida é feita com todos os cereais e todas as folhas. Porque ele lida mais com isso, a saúde”. Quem explica é o antropólogo e professor da Universidade Federal da Bahia Milton Moura. As comidas, acrescenta o professor, são servidas aos convidados em grandes folhas.

Os cuidados em torno da saída do orixá às ruas envolvem até a Federação Nacional do Culto Afro Brasileiro (Fenacab), que disciplina tudo o que diz respeito à tradição africana, como os terreiros e baianas de acarajé. “As pessoas receberam a obrigação dos antepassados de colocar na rua duas pessoas com um tabuleiro preparado com a representação do orixá. Quem quiser, dá um dinheiro”, sintetiza Antoniel Bispo, secretário da Fenacab e babalaxé do Omin Natossê. Antes de sair às ruas, a maioria das casas religiosas envia um representante até o órgão para obter a licença. O assunto é tão sério que quem não segue as normas pode ter os objetos litúrgicos apreendidos: “Nós fiscalizamos e já prendemos tabuleiros. Algumas pessoas colocam balaio o ano todo, pedindo esmola. Também não é para a pessoa sair manifestada e em lugares como o Centro Histórico. Isso é profanação”.

Um cheiro delicioso de pipoca vai acompanhando as filhas-de-santo que participam do Sabejé, caminhando rápida e decididamente pelo asfalto. Dizem que o ritual já foi mais longo e que um número muito maior de casas religiosas mantinha essa tradição. Hoje, as mulheres que ainda realizam a peregrinação, dividindo espaço com carros, ônibus e transeuntes apressados, vão nos mostrando que ainda há espaço para a fé nas ruas, mesmo quando ela não está acompanhada de multidões e festa.

Entre as casas que não fazem mais a peregrinação nas ruas, a tradição é mantida internamente, durante sete dias. “A maioria das casas antigas deixou de fazer o Sabejé na rua, porque hoje em dia as pessoas não estão mais respeitando nada, os tempos mudaram: é um fluxo grande de carros, as agressões dos protestantes”, explica o pai-de-santo Silvanilton. Nas casas que mantêm a tradição, explica ele, as filhas-de-santo que participam da peregrinação são pessoas experientes, com mais de sete anos de iniciação, “pessoas que sabem se conduzir e não vão se indispor se enfrentarem algum problema”..

O tema mais delicado de todos é o sacrifício de animais. “Um tema importante e ainda pouco tratado. O sacrifício votivo é um ato religioso de proporções extraordinárias, um gesto simbólico, uma oferenda”, afirma o antropólogo Júlio Braga. Segundo o antropólogo Raul Lody, em seu livro Santo também come, os sacrifícios de quadrúpedes, como carneiros, bodes e cabras, e de aves como galos, pombos e galinhas, geralmente são feitos por homens especialmente treinados, que sabem o modo como o animal deve ser morto e os “pontos” que devem ser cantados: é o axogum, o mão de faca. Todas as partes dos animais são aproveitadas: a carne e os miúdos nas refeições, o couro nos atabaques, os chifres e ossos nos assentamentos. Se alguma coisa não for feita da forma correta, o orixá pode recusar a oferenda e cobrar em dobro, afirma Lody.

As comidas secas, acompanhadas ou não de carnes, são, em geral, menos misteriosas, mas nem por isso menos poderosas. O azeite de dendê, que quase sempre está presente, traz muita energia, a força máxima, e é o símbolo maior da culinária africana, presente em uma infinidade de pratos. Todas as obrigações começam homenageando e pedindo licença ao dono dos caminhos – é o padê para Exu, onde a farofa de azeite (epô) não pode faltar. Às vezes, faz-se também a farofa de água (omi) e a farofa de mel (oim), descreve Valdélio Sousa em seu texto. Em algumas casas, o único orixá ao qual não se serve o dendê é Oxalá. “Para ele, não entra camarão, azeite, nem sal, é só cebola pura”, explica Dona Nidinha. Porque, sendo o branco a cor preferida de Oxalá, seus alimentos também precisam ser imaculadamente alvos.

O inhame, uma planta muito resistente que já existe na África há cinco mil anos, sempre foi um tubérculo extremamente importante para diversos povos. A ele credita-se, por exemplo, a incrível fecundidade das mulheres iorubás: a Nigéria é o país com o maior número de nascimentos de gêmeos do mundo. Como não podia deixar de ser, é feito com inhame o ipeté de Oxum, a deusa das águas doces, da gestação e da fertilidade. Feito com inhame descascado e cozido, camarão, cebola e dendê, o ipeté é uma comida que não deve ser vista, por isso aparece camuflada num cesto, entre flores, folhas e presentes, afirma Valdélio Sousa.

Nancy de Souza, mais conhecida como Dona Cici, a Otum Iá Ilê Efum do Ilê Axé Opô Aganju,  conta alguns detalhes da preparação desse alimento que, no seu terreiro, é servido numa festa que homenageia Oxum e Iansã:

São as filhas de Oxum que preparam o ipeté. Primeiro descascam o inhame e põe para cozinhar. Quando está bem mole, pegam um grande pilão e vão botando o inhame lá e todas elas vão socar um pouco, até se tornar uma pasta. Se tiver 10 ou 20 mulheres de Oxum, todas elas vão socar um pouco. Depois que está uma massa uniforme, coloca-se numa grande panela com temperos – cebola, camarão e dendê – e todas têm que mexer.

Com esse tubérculo se faz também o prato preferido de Oxaguiã ou Oxalá jovem – o dono do inhame – que, contam alguns, inventou o pilão só para poder comer o inhame pilado com limo da costa. A Ogum é oferecido o inhame de várias formas, mas, principalmente, assado, como convém a um guerreiro.

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