Depois de 1933 o Candomblé nunca mais seria visto da mesma maneira. Foi nesse ano que João Alves de Torres Filho, o Joãozinho da Goméia, foi iniciado na religião pela tradição Angola. O garoto nascido em 27 de março de 1914, na cidade de Inhambupe, a 153 quilômetros de Salvador, Bahia, foi dono de personalidade que seria o combustível para tal mudança. Seria ele, o grande responsável pela popularização da religião no Brasil e ficaria conhecido como Rei do Candomblé.

Foi aos 10 anos de idade que o garoto começou a sentir fortes e inexplicáveis dores de cabeça e a sonhar constantemente com um “um homem cheio de penas”. Avisos dos orixás que o fariam buscar a iniciação na religião e tornar-se o primeiro sacerdote do Candomblé de Caboclo realmente conhecido no país. Em outra fase de sua vida, refez o santo no Terreiro do Gantois com Mãe Menininha e eternizou-se como referência nas tradições do Candomblé: Angola, Bantu e de Caboclo.

Preconceitos e ascensão – Negro, de personalidade irreverente à sua época e à sua envergadura como líder espiritual, Joãozinho foi homossexual assumido, compositor, dançarino, costureiro e bom garantidor de polêmicas ao apresentar as danças sagradas dos orixás em espaços públicos. Além do racismo e dos preconceitos vividos por suas escolhas de vida, sofreu críticas dos seus irmãos de religião que não admitiam um pai-de-santo se dedicar a um caboclo – espírito encantado originário das religiões indígenas, sem relação com a África -, no caso, o Caboclo Pedra Preta.

Joãozinho foi um homem com ascensão meteórica para um religioso que transgredia as regras dos chamados grandes terreiros. Sabia do poder da imprensa e nela se apoiou ao ponto de chegar a uma fama comparável somente a de Mãe Menininha do Gantois. Foi o primeiro pai-de-santo a perceber o poder da comunicação e a usá-lo para reduzir a discriminação contra o Candomblé.  Manteve relações com publicações importantes como a revista O Cruzeiro e, apesar de todo esse reconhecimento, esteve longe de ser uma unanimidade entre o povo de santo.

Seu primeiro terreiro foi erguido num bairro chamado Ladeira de Pedra, mas logo foi transferido para o local que o tornou famoso, a ponto de incorporar o endereço ao próprio nome: Rua da Goméia. Em 1948, o pai-de-santo deixou a Bahia e mudou-se para o Rio de Janeiro, onde abriu casa no município de Duque de Caxias. Seu terreiro era feito com modestas instalações, o que não o impediu de tornar-se um local famoso.

Ainda, nas décadas de 1950 e 1960, o Terreiro da Goméia passou a ser referência, não só por ser um dos primeiros terreiros de Candomblé na região sudeste, mas também pelos seus frequentadores, políticos e artistas de todos os lugares. Entre eles, Cauby Peixoto, Dorival Caymmi, Emilinha Borba, Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Maria Antonieta Pons, Marlene, Paulo Gracindo, Solano Trindade, Tenório Cavalcanti e José Bispo dos Santos ou Pai Bobó.

Passagem – Após 57 anos de vida e 40 de dedicação ao Candomblé, Joãozinho da Goméia desencarnou. Era 19 de março de 1971, quando na mesa de cirurgia o babalorixá não resistiu ao procedimento que o libertaria de um tumor cerebral. Por estranha coincidência, no mesmo dia, seu terreiro em Duque de Caixas promoveria o Lorogun – uma das grandes cerimônias do Candomblé que significa o fechamento do terreiro para o período da Quaresma.

Joãozinho foi sepultado no cemitério de Duque de Caxias, num dia em que uma chuva de proporções míticas caiu sobre o Rio de Janeiro, exatamente na hora em que seu ataúde baixava à sepultura. Para os adeptos, uma manifestação de Iansã recebendo seu filho, o que culminou em muitos filhos-de-santo incorporando seus orixás e dançando, em transe, em pleno cemitério.

Herdeiros da Goméia – Sete dias após a morte de Joãozinho, os búzios foram jogados para que fosse indicado o herdeiro do trono da Goméia carioca. Para surpresa de todos, a escolhida foi Sandra Reis dos Santos, aos nove anos de idade. Filha de Kitala Mungongo, iniciada por Joãozinho há 80 anos, Sandra que é  hoje Ceci Caxi, nasceu dentro da Goméia no dia primeiro de novembro de 1961, pelas mãos do próprio seu João, que também foi seu padrinho de batismo.

Os terreiros erguidos por Joãozinho foram extintos depois de sua morte. Porém o babalorixá formou diversos filhos-de-santo, que criaram novos terreiros em São Paulo e no Rio de Janeiro. São casas de Candomblé que ainda hoje se apresentam orgulhosamente como fazendo parte do “modelo Goméia”, ou da “raiz Goméia”. No Sudeste, seu nome é uma verdadeira grife da religião. Em Salvador, o terreiro também teve um triste fim, foi desfeito e a área onde se localizava é hoje ocupada por instalações da Embasa.

Entre os religiosos que também dão continuidade a linhagem da Goméia, estão ainda  Maria Lúcia Santana Neves (mãe Lúcia), herdeira da Goméia na Bahia, e Sebastião Paulo da Silva (Gitadê), que se responsabilizou por garantir descendentes da linhagem em São Paulo, estado para onde levou os assentamentos de Joãozinho a fim de zelar para que os ibás de seu Oxossi e sua Iansã permaneçam devidamente cuidados e alimentados.

Quanto ao caboclo Pedra Preta, a entidade mais famosa incorporada por Joãozinho, ficou sem um sucessor à altura. O assentamento do Caboclo se encontra atualmente no Terreiro São Jorge, na Bahia. As histórias contadas pelas pessoas que conheceram Joãozinho são o que vêm perpetuando sua memória.

A Fundação Cultural Palmares tentou entrar em contato com os herdeiros da Goméia para entrevistá-los, porém não foi possível devido a condição de saúde de Gitadê, a viagem de Mãe Lúcia à Portugal e a localização de Ceci Caxi.

Fontes:

Artigo Joãozinho da Goméia, o Rei do Candomblé de Marccelus Bragg

Artigo A Luta pela Goméia e o Resgate da história de  Waldemar Alvarenga Lapoente

Artigo O Negro Baiano Pai Joãozinho da Goméia: o Candomblé de Duque de Caxias na mídia dos anos cinquenta de Joselina da Silva

Artigo Joãozinho da Goméia, o Tatá Londirá, o Rei do Candomblé de Caboclo por Alexandre Santos

Fonte: Palmares Fundação Cultural

Respostas de 14

  1. Motumbá, meu mais velho
    Como foi de natal? Espero que tenha sido ótimo e de harmonia!

    O texto diz: “Em outra fase de sua vida, refez o santo no Terreiro do Gantois com Mãe Menininha”.
    Existe uma dúvida muito grande por parte de muitas pessoas, acredito, no que se refere a ser de uma nação e fazer a ‘troca das águas’.
    Joãozinho da Goméia era de nação angola e depois tomou obrigações no ketu, com mãe Menininha. O texto fala em ‘refazer o santo’, mas existe isso, de “refazer”? Eu aprendi em minha casa que, uma vez feito, o santo só é “””desfeito””” (com muitas aspas, porque o desfeito aqui tem sentido de libertação do orixá do corpo do iniciado falecido). Então como é possível refazer o santo?
    O que acontece se um ebomi troca de nação? Começa do 0 ou continua com os 7 anos? Porque o aprendizado é outro, os fundamentos são outros, não?
    No caso de babalorixas que trocam de nação, por exemplo, eles voltam a ser yawo?
    E como uma pessoa que tem orixá, por exemplo, troca de nação e passa a ter vodun ou nkisse?
    E tem que raspar de novo? 21 dias de recolhimento de novo?

    Acho muito complicado tudo isso, porque pelo que eu observei, cada um tem um entendimento quanto a esse assunto… Qaul a opinião do senhor?

    Obrigada!

    Ahh, feliz ano novo pro senhor, que os orixás lhe protejam neste 2015 e que seu ano seja cheio de paz e harmonia!

    1. Maria o natal foi bem feliz e 2015 será de paz, com certeza. E espero que seja de paz e harmonia pra todos nós. Ms que principalmente aprendamos a andar cada um no seu caminho e, assim, encontremos nossa paz. Axé.
      Maria, antigamente, quando chegava alguém numa Casa de Axé, e veja que eu sempre faço uma grande diferença quando falo de Casas de Axé, com letras maiúsculas, e as demais casas de axé. Sinto muito fazer esta diferenciação e tornar isso público, assim, tão duro. Mas é verdade e precisamos ter bem claro que muitas casas nem deveriam existir, não tem Axé pra isso. Pois bem, eu estava falando que antigamente as Casas eram diferentes, se chegasse alguém que era de Vodum ou Inkisse, o sacerdote o encaminhava para uma Casa amiga e estava resolvido o problema. Hoje temos casas que tocam tudo, ketu, angola, jeje e umbanda. tudo pra agradar a todos e, lógico, ter mais rendimento financeiro. Acho que só este pequeno trecho já te responde, certo? Mas como vc citou o sr Joãozinho, alguém que tenho muito apreço e faz parte da minha caminhada (indiretamente), vamos lá. O sr Joãozinho só tomou obrigação no Gantois por necessidade, nada além disso. Ele nunca trocou sua nação, sempre foi uma angola que naquele tempo já misturava angola e ketu (não faço juízo de valor), mas era misturado sim. Ele se manteve fiel a sua raiz até quando pode. O que vejo hoje é um troca troca generalizado por conta de status social/religioso. Mas, como vc citou, ninguém quer ser yawo, todos querem o glamour e o nome. Vc tem razão, ninguém deveria raspar novamente, isso, pelo que sei, não existe. Devemos, como sacerdotes, no mínimo, respeitar a mão e história de quem raspou aquela cabeça, ok? Mas hoje muitos querem a “mão e o axé” de fulano da moda, ou os que se intitulam “o rei disso” e “a rainha daquilo”. não é verdade? Tem gente que é ogan ou ekedji há anos, “de repente” “”””” dá orixa”””””, e passa a contar tempo desde a confirmação……….
      Maria, eu acho que vc está no caminho certo de suas deduções, concordo com tudo que vc falou, seja assim sempre, fiel ao seu Axé. Axé, Tomeje.

      1. A resposta do senhor me trouxe outra duvida, baba: algumas pessoas afirmam que orixás como Omulu, Oxumare e Nanã na verdade são divindades do panteão jeje e foram incorporados pelos yorubás devido a proximidade do território, ou seja, são voduns que “viraram” orixás. Se isso for verdadeiro, um filho de algum desses orixás pode trocar as águas para jeje sem problemas?
        Axéé oo

        1. Maria, oi, tudo bem? cade o texto? kkkkk
          Sim, estas Divindades fazem parte da cultura Fon (Jeje) e, algumas delas, foram incorporados ao Ketu. Assim como alguns Orixas fizeram o caminho inverso e são cultuados no Jeje. Mas é preciso que saibamos o seguinte. Estas uniões ou “sincretismos” se deram em território africano devido a guerras ou casamentos entre etnias. E nestas “trocas” estas Divindades, tanto Orixas como Voduns, foram respeitados em suas características principais, mas acabaram se moldando ao culto que os recebeu. Portanto, no meu entendimento, não há motivos pra alguém trocar de Axé só por causa disso que vc citou, dá pra conviver muito bem com os Voduns que existem no Ketu e com os Oirxas que vivem no jeje. Tente achar vídeos dos terreiros de Terecô e da Casa das Minas. É uma outra cultura muito diferente do que estamos acostumados a ver aqui no Sudeste. Axé, Tomeje

  2. Abença, Tomeje

    Como foi de ano novo?
    Procurarei os vídeos no youtube e depois lhe conto, ok?
    Fiz o texto!!!! Como faço pra lhe entregar?

    Aliás, falando em ano novo: ouvi dizer que é costume em algumas casas do rio de janeiro que os filhos “virem” no ano novo. Por que isso? Qual o fundamento?

    Obrigada, axé!

    1. Maria, que bom falar com vc. Aqui foi tudo calmo no ano novo. O emial cadastrado no blog é válido? Se não for, por favor me envie um válido pra eu te contactar. Maria, realmente isso é costume sim, mas tem diversas condicionantes. As vezes isso acontece com as pessoas que deram obrigação de tempo (01, 03, 05 ou 07 anos) nos últimos 06 meses e ainda estão em algum resguardo. Mas em geral são só os Yawos recém iniciados, ou seja, aqueles que estão cumprindo o resguardo de 01 ano. Mas esta “regra” vale pra todas as grandes festas como, por exemplo, o carnaval. É uma forma de proteger e, de certa maneira, controlar o yawo. Sabe como é Yawo, né? kkkkk Adora fazer tudo que não pode kkk.

      1. Abença, pai. desculpa a demora! O email é valido sim, pode entrar em contato por ele!
        Perguntei isso do ano novo porque aqui na minha terra não é comum, então quando ouvi falar disso achei um pouquinho esquisito rs. Mas agora que o senhor me explicou eu entendi!
        Obrigada, axé

  3. Olá tomeje olhando seus posts me veio uma dúvida em qual angola joaozinho da gomeia foi iniciado?
    Tipo: tumba junsara,bate folha ect…
    Se puder me envie por email.
    Agradecido, abraços!

    1. Rodrigo seja bem vindo. O sr Joãozinho da Gomeia foi iniciado na Goméia em Salvador e veio pra o Rio na década de 1950 onde fundou a Gomeia rio. Sua raiz é o candomblé de caboclo, um tipo muito específico que hoje não é mais praticado. Asé, Tomeje

    1. Cherie, é verdade, ele não era ketu. Mas foi um dos grandes expoentes do candomblé da sua época e até hoje é uma referência para o candomblé. Asé Tomeje.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *