ENTREGA DO DEKA

A ENTREGA DO DEKA

A ENTREGA DO DEKÁ – ODÚ IGÊ – IMPORTANTES CONCEITOS DE ÉTICA, MORAL E RESPONSABILIDADES

A entrega do deká, é o ápice da iniciação no Candomblé. Após os sete anos de iniciação, o até então Iaô deverá fazer sua obrigação correspondente e, se tiver em seu destino a função de abrir uma nova Casa, receberá então seu deká (na Nação Ketu, constituindo-se de uma bandeja com os atinentes elementos) ou sua Cuia (na Nação Jeje, sendo a própria cabaça – Àkérègbè, cortada acima do meio em forma de vasilha com tampa, transformando-se em igbaxé, para colocar-se os símbolos).

Apesar desta diferenciação étnica, face ao acentuado sincretismo e integração entres as diversas Nações, tal nomenclatura e procedimentos não são tão rígidos, observando-se diversificação em várias Casas.

Com a obrigação de sete anos (odú igê), o Iaô passa à categoria de ebômi, ou vodunsi.

O recebimento da cuia, habilita o portador a abrir seu próprio Candomblé, embora não obrigue o novo ebômi a abandonar seu atual Barracão.

A cuia, portanto, contém os elementos simbólicos e necessários à abertura de um novo Candomblé, tais como uma tesoura, uma navalha, búzios, contas, folhas, uma faca, um ekodidé, etc.

A entrega do deká e/ou a exclusiva obrigação de sete anos, são muito esperados pelos filhos-de-Santo, posto que garantem grande elevação na hierarquia do Candomblé. Contudo, devemos ressaltar a importância e as responsabilidades que este passo requer.

Entre os vários deveres intrínsecos, destaca-se a tarefa de zelar pelo Culto, pela Religião, mantendo seus conceitos, preceitos, e corrigindo deformidades que denigrem o Candomblé.

Ao contrário do que muitos supõem, o Candomblé não é uma religião aética ou amoral. Desde os mais remotos tempos na África, já consideravam-se importantes conceitos de moral, ética, tabus (ewós – interdições) e até uma espécie de mandamentos yorubanos.

Segundo a tradição yorubá, a origem dos deveres morais provém da Divindade Suprema (Olorum ou Olodumare). Olodumare colocou nos Homens o Ifá Àyà (O Oráculo do Coração ou Oráculo Interior), o que seria sua orientação ética e moral inatas. Uma pessoa seria boa ou má conforme ela corresponde ou desobedece ao seu Oráculo Interior, à sua consciência.

A busca pela boa conduta seguindo à consciência e às leis superiores, confere ao Candomblé seu “status” de religião, a medida que liga o Homem a Deus (“religare”), proporcionando a melhora do indivíduo.

A concepção de OMOLÚWABI (“filho do bom caráter”), expressa o princípio yorubano de que o cidadão deve respeitar aos mais velhos, ter lealdade para com os pais e para com a tradição, honestidade, hospitalidade, coragem, devoção, paciência, verdade, assistência aos necessitados e desejo irresistível ao trabalho, a fim de manter ilibado seu nome e o de sua família (entenda-se inclusive a de Santo).

O mais importante valor do povo Yoruba é o caráter, que é o maior atributo do homem. A palavra iwà vem do verbo wà – Existir, Ser. Odùnrin náa ní ìwà, Aquele homem tem um bom caráter. O indivíduo qué ìwà pèlé não entra em choque com nenhuma força humana e supernatural, vive em plena harmonia com todas as forças do universo. E este fato tem um forte peso no julgamento divino e define o bem estar na terra e o nosso lugar futuro após a nossa morte ou renascimento. Olódùmaré o Deus supremo e conhecido como Olúmònokàn, “aquele que conhece todos os corações”, que tudo sabe e tudo vê, e o seu julgamento é correto e absoluto.

Ìwà nikàn l’ ó sòro o

“Caráter é tudo o que é necessário.”

Eni l’ orí rere tí kò n’ iwà, ìwà l’ o máa b’ orí rè jé.

“Uma pessoa de bom orí, que não tenha caráter, irá arruinar o seu destino.”

Havia também entre os povos Bantos, um conjunto de normas que proibia, entre outras coisas, provocar o aborto, injuriar, cometer adultério, praticar incesto, tudo visando resguardar a moralidade da família.

Alguns provérbios bem revelam isto:

Ebí jàre òle – O homem indolente é o único responsável por sua fome.

Ìsé kó gbékún – Choro não é resposta para pobreza.

Àìfágbá féníkan, kò jé ayé é ó gún – Faltar com respeito à autoridade é a origem dos conflitos do mundo.

Ìwà nikàn l’ó sòro o – O caráter é tudo o que é necessário.

Reza a tradição que Olofin, chamou a todos os homens ao pé de uma montanha para ensinar-lhes as leis, já que não as conheciam. Chamou pobres e ricos, grandes e pequenos, mulheres e homens, alertando-os se quisessem compartilhar com eles suas aldeias que tinha no céu. E deu-lhes seus MANDAMENTOS:

“Não roubarás nada dos outros

Não matarás a quem não tenha lhe causado dano, nem os animais que não precises para teu sustento

Não comerá a carne do ser humano

Viverás em paz com teus irmãos

Não desejarás nada de seus amigos, nem mulher; o que desejares deverás obter de teu esforço

Não amaldiçoarás o meu nome. Respeitarás pai e mãe. Não pedirás mais do que posso dar-te e te conformarás com teu destino no mundo.

Não temerás a morte, nem tampouco a buscarás por tuas próprias mãos. Transmitirás meu mandamento a teus filhos e filhos de teus filhos.

E por último, que minhas leis sejam respeitadas, se não o fizeres conhecerás meu castigo.”

O filho-de-santo, então deve ser orientado, desde sua tenra iniciação, a respeitar estes conceitos, a fim de manter a honra de seu nome e evitar que algo o desabone, bem assim o de seu egbé (sociedade).

Para bem utilizar o deká, é fundamental ser um omolúwabi.

A transmissão destes conceitos, se dá através da tradição oral, dos provérbios, orikis, itãns, canções e, principalmente, por via da aplicação prática.

Não basta possuir o título de ebômi para merecer respeito. É necessário angariar respeito pelos seus gestos e atos. Ao contrário, o respeito será apenas formalidade hierárquica.

É uma falha do zelador não reconhecer a conexão entre a moralidade e a religião. Isto o leva a entender que tudo se resolve através de ebós. No entanto, grande parte das vezes, o consulente está descumprindo normas religiosas, tais como aquelas acima elencadas, e assim desagradando aos Orixás. Nestes casos, antes de qualquer coisa, deverá corrigir sua conduta para, posteriormente, avaliar-se o cabimento de algum ebó de apaziguamento.

Fundamental também, é entender que apesar de alguém sofrer injustiças, não deve fazer justiça com as próprias mãos.

Fí ìjà fún Olórun já fí owó l’éran – Entregue nas mãos de Olorun para que ele o defenda.

O mal não se combate com o mal. Ao contrário do que se pensa e do que muitos praticam, não se deve pedir a nenhuma Divindade vingança. Nem mesmo agradar Exú para que este faça mal a terceiros.

Exú é o guardião, é o instrumento do equilíbrio da justiça. É o princípio da comunicação, da ordem, do equilíbrio e da harmonia universal. Aí também a energia criadora de Exú. De tempos em tempos, compete a Exú inspecionar o trabalho das pessoas e Divindades, relatando a Olodumare. A Exú cabe aplicar o que couber aos transgressores. Contrariar a isto, será subverter-se à ordem desperdiçando axé e comprometendo-se a si próprio, posto que um erro não justifica outros.

Alertamos no sentido de que todos os envolvidos em trabalhos maléficos (inclusive os de vingança), estarão sujeitos a pagar pelo mal, tanto os que requisitam, quanto os que executam.

Nestes casos, deve-se consultar o jôgo de búzios e verificar o que é mais recomendável, se trabalhos de proteção, afastamento, oferendas, fortalecimento, etc., jamais realizar ebós para o mal.

O guardião da moral do Candomblé, é Oxalá. Seu próprio nome primordial assim o define: Obàtálá – O Rei cuja roupa é branca, ou o Rei que possui honra. A ética e a moral, infelizmente tão esquecidas no Candomblé, são zeladas na brancura de Oxalá e podem ser assim resumidas:

O caráter (ìwà), é o maior dos valores morais e o maior atributo do Homem. Quem tem bom caráter não colide com nenhuma força humana ou sobrenatural, vivendo em perfeita harmonia com o mundo.

A bondade (oore), considerada uma grande virtude, sobretudo quando gera hospitalidade e generosidade. Para o povo yorubá, fazer o bem é a grande realização diária.

A paciência (sùúrú), é entendida como o fator primordial para evitar precipitações que decorram na perca de caráter. A paciência é o primeiro filho de Olodumare e o pai do caráter.

A promessa (Ìbúra), é igualmente um dos mais importantes itens, sobretudo porque desde a iniciação, a pessoa cria vínculos de promessas à Casa e a sua Divindade.

O respeito (Òwò), a que todos devem entre si, sobretudo aos mais velhos pela sua antiguidade e experiência.

Ser verdadeiro (Olóòtòo), é uma virtde essencial de uma comunidade.

Ser justo e sincero (Olóòdodo).

Fazer caridade (Ìféni).

Respeitar os tabús (Èwò), é também de grande importância. Não se deve transgredir as determinações do que deve ser feito, evitado, comido, vestido conforme a vontade das Divindades, sob pena de gerar as chamadas kizilas.

A literatura de Ifá, é a maior fonte deste valores.

Deve-se conhecer, praticar e orientar aos consulentes quanto às normas de conduta morais e éticas, tanto para cumprir a função religiosa inerente ao Candomblé, quanto para agradar às Divindades e para a melhora da Sociedade. A consulta a qualquer oráculo, opelê ifá, búzios, alobassá, orobô, inhame (íyan), obi, etc., não deve ser vista como a solução para todos os problemas, mas o meio pelo qual se vê, ou se previne do que está errado, buscando meios de trentar reverter ou amenizar. Importante entendermos por “errado” também as condutas incompatíveis com a ética e a moral das Divindades, e consequentemente da Religião.

Os preceitos éticos e morais devem também nortear os vodunsis quando estes se prestarem a consultar um oráculo para atender a um consulente. Diante disto, não se deve faltar com a verdade; deve-se Ter precaução com o que se diz e como se diz; deve-se agir com bondade objetivando a caridade; e sobretudo deve-se Ter fé, para que a intuição seja norteadora da consulta junto às divindades.

Márcio de Jagun Babalorixá, escritor, professor universitário, advogado e apresentador do Programa Ori (ori@ori.net.br)

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