Iorubá dos terreiros, parte 1

Iorubá dos terreiros

PRODUÇÃO

Pesquisa bibliográfica, entrevistas e elaboração dos textos:  Agnes Mariano / agnesmariano@gmail.com
“Quero ver meus filhos com anel no dedo e aos pés de Xangô”, dizia a ialorixá Aninha, fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá. Com essa frase, a famosa sacerdotisa expressava um dos maiores desafios que enfrentam os negros e mestiços baianos: ter acesso a melhores condições de educação, emprego e moradia sem ter que esquecer e até disfarçar a herança africana. Muitos baianos corajosos aceitaram esse desafio e conseguiram manter viva até hoje – 150 anos após o fim do tráfico de escravos – a língua dos nossos ancestrais: o iorubá.

O nigeriano Ajayi Adekanye, professor de iorubá do Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao), da Ufba, confirma: “A língua que se fala nos terreiros baianos é o mesmo iorubá da África”. Pelo que observou em Salvador, o iorubá que se manteve aqui é uma versão arcaica – mais antiga, com palavras que caíram em desuso -, mas ainda compreensível. “É como se você ouvisse um português da época do descobrimento falando”, compara o professor. Desde quando chegou à Bahia, Ajayi já teve contato com vários baianos que conseguem expressar-se em iorubá, principalmente através de frases simples: “A maior dificuldade é o ritmo, que todo mundo perde quando não pratica cotidianamente a língua”.

Duas características da civilização iorubá auxiliaram especialmente a manutenção da língua: o importância da oralidade – que desenvolve bastante a memória – e a sobrevivência da religião africana na Bahia, em cujos rituais a palavra falada é elemento fundamental. Nas comunidades iorubás, como os terreiros, o conhecimento é transmitido oralmente, através das cantigas, invocações, dos orikis – em forma de frase, palavra ou poema – das lendas, parábolas e vários tipos de textos sobre os ancestrais, explica a antropóloga Juana Elbein, em seu texto A expressão oral na cultura negro-africana e brasileira. Na Bahia, como sempre aconteceu na tradição africana, o principal veículo de transmissão dos valores e da linguagem iorubá foi e continua sendo a religião – entoando seus antigos cânticos de saudação aos orixás, muitos baianos tornaram-se então cidadãos bilíngües.

Como no aprendizado de qualquer língua, a melhor opção é sempre começar na infância e, se possível, dentro da família. Em Salvador, os descendentes dos iorubás mantiveram a sua língua viva da mesma forma como fazem, até hoje, muitos descendentes de italianos, alemães e de outros imigrantes que vieram para o Brasil. A comparação é feita por Antônio de Sant’Anna – o obá Kankanfô -, 81 anos, que presenciava, na infância, os seus vizinhos descendentes de alemães, de vez em quando, arriscarem alguma palavra da língua dos avós.

Na família de Kankanfô, o iorubá estava presente no cotidiano, desde quando o seu pai – Miguel Sant’Anna – lhe pedia o pão ou a farinha, às cantigas para os orixás. Ligado à religião tradicional africana por laços familiares – seu pai era ogã da Casa Branca e Kankanfô é filho adotivo de Maria Bibiana do Espírito Santo, a Mãe Senhora do Opô Afonjá -, ele encontrava nas casas religiosas um estímulo redobrado ao aprendizado da língua, aprendendo com os mais velhos e praticando com os outros garotos. Era tudo tão natural para Kankanfô que até nas reuniões preparatórias para a primeira comunhão, quando rezava o Pai-nosso em voz alta com as outras crianças, ele de vez em quando misturava o português com o iorubá. Uma distração que lhe custava algumas broncas e puxões de orelha.

O que impressiona, no caso dos descendentes dos iorubás na Bahia, é o fato de eles terem conseguido manter viva a sua tradição, apesar da condição de escravos e enfrentando até a perseguição policial às suas manifestações, como o samba nas ruas, a capoeira e práticas religiosas. Somente em 1976, na gestão do governador Roberto Santos, as casas religiosas foram autorizadas legalmente a funcionar sem precisar de licença da polícia. Até o início do nosso século, não era raro os terreiros baianos serem invadidos pela polícia e seus adeptos, espancados e presos. Segundo o antropólogo Ordep Serra, um testemunho desse período lamentável estava presente e exposto até pouco tempo atrás no Museu Estácio de Lima. “Objetos sagrados do candomblé, aprisionados pela polícia, estavam expostos ao lado de vários tipos de objetos que documentam crimes, como armas”. Adeptos da religião africana entraram com uma ação no Ministério Público para retirar os objetos da exposição.

A nova geração do povo de santo, felizmente, não precisa mais enfrentar tantas dificuldades para exercer a sua fé ou aprender o iorubá, que ainda é considerado importante, “para não ficar voando”, diz Iraildes Santos, 23, do Afonjá. Mas, como herdeiros diretos da cultura iorubá, eles sabem que não se deve ter pressa. Enquanto brinca com as outras 15 crianças do Ilê Axé Oxumaré, na Vasco da Gama, Sidnei, 5, vai mostrando o que conhece – “Roncó é o quarto onde fica a iaô, quando ela faz o santo” – e dá uma larga risada, caçoando de quem não sabe que obé é uma faca. Daniele, 14, e Juliete, 10, explicam que é ouvindo, perguntando aos mais velhos e participando do dia-a-dia do terreiro, que o vocabulário vai se enriquecendo. “Eni é esteira, batá é chinelo e açúcar é ió”, ensinam as garotas. Antes de dirigir-se a alguém mais velho na casa, elas já sabem, é sempre bom pedir licença, dirigindo-lhe um agô.

As 350 crianças que freqüentam a Escola Municipal Eugenia Anna dos Santos, no Afonjá, em São Gonçalo do Retiro, aprendem em sala de aula que boa tarde é Ku axalé, desculpe é Pelé ô, bom trabalho é Ku ixé e até logo é Adolá. O hino do Afonjá, em iorubá, a criançada canta de cor durante as festas. São meninos e meninos entre 6 e 14 anos, de São Gonçalo, Pernambués, Cabula e bairros próximos. Entre os jovens da própria comunidade religiosa, apenas 10 estão nessa faixa etária e estudam na escolinha do terreiro. A língua e a cultura iorubá estão presentes, ainda, nos contos africanos que são trabalhados em sala, interligando as várias disciplinas.

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