Jurema: Representações urbanas e drama social afro-indígena. parte II

Jurema: Representações urbanas e drama social afro-indígena. parte II

José Flávio Pessoa de Barros.

História.

Já em 1782, existe a menção à utilização de uma planta chamada de Jurema, que é descrita minuciosamente, embora o texto não apresente a classificação científica. Presume-se, no entanto, que se trata da Jurema-de-espinho. O autor, Francisco Antônio de Sampaio (1969), aponta, no livro História dos Reinos Vegetal, Animal e Mineral do Brasil, pertencente à Medicina as propriedades adstringentes e utilização na medicina popular como um poderoso agente contra o veneno da mandioca-brava. Nesta publicação, encontram-se, também, alguns desenhos onde se reconhece os espinhos que fazem parte da chamada Jurema-de-espinhos ou ainda Jurema-preta. O uso popular desta espécie a descreve como aquela que “endoida” e proporciona “visões e sonhos” aos que a utilizam em seus contextos religiosos. Estas espécies são empregadas na preparação do chamado “Vinho da Jurema”, e alguns deles possuem efeitos reconhecidamente alucinogênicos, pois contém em sua composição dimetiltropitamina, substância relacionada com a bufotorina e a serotonina, capazes de atuar sobre os centros nervosos. Porém, conforme Schultes, os efeitos só existem na presença de um inibidor da monoamina oxidase, visto que as triptaminas, segundo este autor, não produzem alucinações se tomadas oralmente, o que nos traz a seguinte questão: para que a ingestão atinja o efeito desejado nos rituais (alucinatórios, premonitórios etc.) é necessário que haja a inclusão de um elemento que potencialize o alcalóide. E hoje já está comprovado que os compostos triptamínicos podem ser ativos oralmente. No entanto, o vinho utilizado nas comunidades indígenas dos Kariri-xocó, segundo eles, não é mais o da espécie que produz alucinações; foi substituída pela Jurema-mansa. Entretanto, os “encantados ou espíritos da floresta”, continuam presentes na Cerimônia do Toré, orientando e aconselhando os que buscam a relação com as rotinas extraordinárias dos ancestrais. O mesmo acontece em relação à bebida que também é chamada vinho, nos Candomblés Bantu do Rio de Janeiro (Candomblés Angola) e em alguns estados nordestinos, onde ocorrem as cerimônias dos Catimbós, especialmente no interior. No caso fluminense, a espécie utilizada, Vitex agnus-castus, não possui propriedades alucinógenas e a sua ingestão diminui simplesmente a libido. A espécie utilizada nos Catimbós, do mesmo modo, não apresenta efeitos alucinogênicos, o que não permite a afirmação de que o transe é provocado por agentes físico-químicos. Não existe, entretanto, uma bibliografia que assegure que somente plantas não-alucinogênicas sejam utilizadas atualmente nos diferentes contextos religiosos do Complexo da Jurema. Andrew Weil (1972) usa o conceito de placebo cultural para explicar a presença e a expressão das expectativas sociais que poderiam estar relacionadas à presença do alcalóide, mesmo na ausência dos princípios ativos. Trata-se, portanto, segundo esse autor de uma indução cultural, embora a resposta fisiológica não possa ser ignorada, o que significa dizer que a bebida sagrada, e socialmente compartilhada, é simbolicamente produzida. Entre os Kariri-xocó, a Jurema não é só uma planta, é a divindade formadora do grupo. Na Umbanda, esta divindade pode por vezes também ocupar esta posição como chefe da falange das caboclas, situando-se dessa forma também como mito de origem. O vinho que algumas vezes acompanha o culto aos espíritos dos índios, considerando seus aspectos químicos, não é um indutor ao transe, mas uma celebração à maneira de pensar e vivenciar a representação do indígena brasileiro. Nos Candomblés Angola, a planta ocupa novamente uma posição central, porém, a espécie utilizada não induz a nenhum estado alterado de consciência. O segredo da utilização desse símbolo tão abrangente está relacionado aos saberes próprios de cada um desses grupos culturais. A composição do vinho, algumas vezes secreta, está sempre envolta na magia que estas representações são capazes de evocar. O uso do “Vinho da Jurema” foi proibido em muitos momentos da história brasileira e os seus seguidores eram chamados de “adjuntos da Jurema”. Relatos mostram que já em 1758 havia uma forte a repressão ao uso desta bebida, descrevendo inclusive a morte de um índio da aldeia Mepibu, onde todos os participantes daquele ritual foram presos. Câmara Cascudo lembra também o viajante Henry Coster relata que as maracas utilizadas nos rituais indígenas eram por estes consideradas como sagradas, e tratando os cachimbos da mesma maneira. Entre os Kariri-xocó, até hoje cachimbos e maracás são também objeto de cuidados especiais e considerados sagrados da mesma forma. A Umbanda guarda, nos cantos dedicados à cabocla Jurema, muitas palavras e imagens relacionadas, tanto aos ritos do Catimbó, quanto aos grupos indígenas nordestinos. Uma de suas canções lembra “a cor da cabocla Jurema”, verde como a cor de todas as folhas que são utilizadas nos diversos rituais, e informa que ela nasceu no Juremá (lugar onde é realizado o Culto do Toré) e chama, a todos aqueles que cultuam os espíritos de caboclos, de juremeiros, palavra que também se refere àqueles que consomem o vinho. A propriedade de cura também é ressaltada quando o verso poético das canções lembram o poder da cura, tanto física, quanto espiritual que a infusão é capaz de trazer. Uma das Juremas decantadas nos cultos umbandistas é a “Jurema-das-matas”, que faz alusão ao espírito assim denominado, classificando como um tipo de Cabocla Jurema, como a das matas. Entretanto, este nome também está relacionado, em outro contexto social (índios), a uma das espécies que produz alcalóide. Outra questão importante é que a participação conjunta de índios e negros nos quilombos foi capaz de produzir mais do que apenas representações simbólicas comuns, mais tarde estendidas às comunidades de Umbanda. Estas habitavam o entorno, tanto dos grupos indígenas nordestinos, como das chamadas terras quilombolas ou terras de quilombo atuais. Desse entrelaçamento surgiu também um novo personagem, conhecido como Ogum-Kariri. Este nome, que fala em Ogum, ancestral africano iorubá, somado ao segundo elemento da palavra, que se relaciona diretamente ao nome do grupo indígena, numa fusão, onde a homenagem alude aos tempos onde negros e índios conviveram como subjugados e subalternos. Os imigrantes nordestinos saíram em busca de trabalho e de nova vida, promovendo a disseminação destas representações pelo país. Muitos religiosos, adeptos do Catimbó ou do Candomblé Bantu, também viajaram para várias partes do Brasil em busca de liberdade religiosa e trabalho. O Rio de Janeiro em especial foi um destes destinos em que os símbolos ganharam novos significados quando expressos nas criações musicais que louvavam os mitos e os locais de origem. A música tornou-se, portanto, como um lugar privilegiado de reflexão e prazer, onde se exaltava a cor e o gosto agridoce de seu vinho. O discurso sobre a saúde ressaltou a utilização das diversas espécies destinadas à cura física e espiritual, como também falou sobre o lugar onde era possível aos imigrantes encontrar acolhimento e lenitivo para seus males.

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