MAMIWATA: dança em deslocamento

MAMIWATA: dança em deslocamento

Profa. Dra. Denise Mancebo Zenicola

Universidade Federal Fluminense (UFF)

 

Resumo: Este artigo insere-se em um longo projeto de estudo do mito MAMIWATA, apresentado sob a forma de  espetáculo de dança contemporânea, onde é abordado o movimento das identidades da cultura afro brasileira. Na experiência e prática de montagem cênica de Mamiwata procuro compreender a dança  afro brasileira como meio estético e um instigante campo para reflexões, fusões de técnicas ocidentais e orientais, com base em uma fenomenologia do corpo e sua relação com processos artísticos.  Por sua marca de errância e em busca da alteridade presentes no mito Mamiwata, apontamos para possíveis caminhos das relações entre corpo e arte na contemporaneidade. A metáfora da vida como uma “viagem”, bem como de proposta artística, situando um corpo dramático porque deslocado do real, um corpo embricado de tensões porque potencializado nas cenas.

 

“Porque vivemos em um tempo de perguntas fortes e respostas

Fracas.” (SANTOS, 2008, p.45).

Mito arquetípico

O mito de Mamiwata, primariamente uma deusa da água Ewe, e presente em diversos países da África, Togo, Benin, Nigéria, Camarões, Congo, entre outros, tem sua iconografia representada como uma mulher/sereia, que carrega em seus braços erguidos, uma cobra. Com mais de dois milênios de existência, renasce com intensidade, no período das sucessivas invasões europeias no continente africano, por volta do século XVI. Sua performance mulher/peixe, presente em outras tradições chega ao Brasil, parcialmente representada pelos Orixá Iorubanos[1] Iemanjá, como também pode aparecer com forte identificação dos Orixás Oxum e Olokun[2], personificações de princípios supremos no sistema de valores e de explicação da existência nas culturas iorubanas. [3]  Mamiwata faz parte do panteão de bens Vodun, com muitos seguidores para o culto da real Dan Python, cultuada pelos povos Mina, Adja, Ewe, Fon, Iorubá e Ibo. (DREWAL, 2008, p.153)

Segundo Drewal, as palavras “Mami” e “Wata.” são enraizadas no Egito antigo e Etíope (copta), Galla e língua demótico. “ Mami ” is derived from “ Ma ” or ” Mama ,” meaning “ truth/wisdom ,” and “ Wata ” is a corruption of not an English, but the ancient Egyptian word “ Uati ,” (or ” Uat-ur ” meaning ocean water), and the Khosian (“Hottentot”) ” Ouata ” meaning “ water .” Further, we discover from Mesopotamian myths that the first great water goddess in the story of the Creation Flood was known as ” Mami ,” (Mami Aruru) as she was known in ancient Babylonian prayers as being the creator of human life (Dalley 2000, p. 51-16, Stone 1976, p. 7,219). “Mami” é derivada de “Ma” ou “Mama”, que significa “verdade/sabedoria”, e “Wata” é uma corruptela da palavra egípcia “Uati,” (ou “UAT-ur”, significando oceano de água), e os Khosian (“Hottentot”) “Ouata” que significa “água.” [4](2008, p. 385)

Dentro do princípio arquetípico Junguiano, esse mito seria um inconsciente coletivo para essas sociedades, com uma organização prévia de comportamentos, onde os conhecimentos estariam guardados. Esses comportamentos, exemplares ou não, seriam processados, através da função simbólica, organizando a consciência coletiva, a que poderíamos chamar de ideias “de base”. (JUNG, 1986, p. 69) Para Bachelard (1998, p. 25),  esse mito funciona como uma recuperação dos anseios e devaneios antigos da humanidade, armazenados no imaginário coletivo.

Ambivalência, dualidade, sabedoria, adaptação e encantamento são algumas das características que definem este arquétipo mitológico Vodun em seu ciclo ritual. Talvez seja também uma capa protetora que envolva e puna os povos e grupos sociais que perderem suas origens e fundamentos.  Seu ritual tem um claro sentido interno, inscrito na cosmologia e forma de pensar desses povos em específico, como pode ainda relacionar-se a outros contextos, como os provocados nas relações diaspóricas, agregando elementos do mundo num quadro mais amplo o que articula esferas mais ampliadas.

Deslocamento e trânsito

O mito revela-se em seu trânsito e fortalece um lócus para representação de vivências diaspóricas. (HALL, 2003, p.28) No Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, exemplificamos um desses caminhos, a atual estrada BR 101. Nesta, a presença de remanescentes de Quilombos na região, entre eles Rasa, Preto Forro, Caveira, Comunidade de Botafogo, indicam o intenso trânsito de escravos, ocorridos por mais de 200 anos. Neste percurso, também ocorria intensa fruição de contos, mitos que revelavam performances de constante construção/reconstrução de identidades profano/religiosas que apresentam-se, sobretudo, como práticas de comportamentos. [5] O que se observa é que este legado tradicional, pela sua constante fluidez e movência (BAUMAN, 2001, p. 87) assume inusitadas formas que serão o esteio para pensar a construção identitária.  As sacralidades africanas, na diáspora, assumem novos contornos dinâmicos e descentrados, entendendo tais contornos, não como uma expressão do caótico, nem do inútil, mas como resultante do pensamento humano direcionado a uma profunda relação de deslocamento horizontal (geográfico) e vertical que entra em outro tempo, o tempo circular, reatualizando o tempo do mito.  No vetor criado deste cruzamento, conceitos, fundamentos, nomenclaturas, mitos e ritos dos povos Mina, Adja, Ewe, Fon, Iorubá e Ibo, em seus respectivos universos cosmogônicos e encenados no Brasil, vão sendo retramados. Percebemos a convivência deste mito inter religiões, que cruza e entrecruza  realidades de interculturação.  Através da oralidade que, longe de ser invenção, é uma narrativa que repete ações já vivenciadas, Mamiwata cumpre seu estatuto de mito que apresenta o homem em suas questões, em existências mais profundas e ao mesmo tempo gerais, em suas relações culturais, em suas procuras.

Dramaturgia no corpo

Partindo de pesquisas na performance da dramaturgia do corpo e do universo mítico de Mamiwata, utilizamos a coreografia e o trabalho do artista pesquisador para desenvolver este passado mítico e ao mesmo tempo real, atual e contemporâneo, em seus sucessivos deslocamentos e justaposições. Fluxo e territorialidade são características desse arquétipo que corporalizamos através de um encontro de técnicas do corpo e videodança.

Desenvolvemos uma História de  fluxos e refluxos, como a nossa História; de um povo marcado por profundos movimentos de deslocamentos, da saída forçada ou não de suas terras. Pensando sobre essas Histórias e tantas estórias, sentimos a necessidade de fazer emergir e de nos imergir nessa história de êxodos, procurando criar uma consciência corporal através de corpos e identidades também em constante fluxo. Uma mãe/mulher que para continuar mãe/mulher altera e alterna sua identidade sob mil corpos e máscaras, às vezes para disfarçar outras para encantar outras para punir os que se esquecem de suas origens, nossa memória ancestral.

Na experiência e prática de montagem cênica e dramaturgia que efetuamos no grupo Muanes dançateatro, Mamiwata reafirma-se como um instigante tema para reflexões e propostas artísticas, pela sua conotação de feiticeira e sereia.  Nossa tentativa é estabelecer o que, segundo Richard Schechner, é um “comportamento restaurado”, para poder efetuar aspectos da performance na cena, em seus aspectos corporais, sonoros e estéticos, como uma forma de agenciamento da memória ancestral, na medida em que tradição e memória vão sendo reelaborados no presente.(2003, p. 38) O princípio de experiência proposta por Turner (1986, p.102) e o movimento que vai do mito ao teatro, em nosso caso à dança,  e vice-versa, proposto por Schechner (1988, p. 39) trazem uma perspectiva interessante, na medida em que nos possibilita criar ciclos rituais (cenas) em dimensões contemporâneas de ações rituais, por meio de imagens e performances, que projetam possibilidades de experiências vividas. Uma estética para além do Teatro Realista, para além da Dança Contemporânea. Tratamos cantos, danças, imagens projetadas, nomes, objetos como integrantes de um repertório ancestral herdado. A performance Vodun de Mamiwata situa então um corpo dramático porque deslocado do real, um corpo embricado de tensões porque potencializado nas cenas em ações físicas conflitantes e as vezes contraditórias, que devem ser “re-encenadas”, repetidas, pois a cada repetição, a cada ciclo ritual, as ações remontam à origem da própria sociedade que a criou.

Como performance, a ação cênica encerra uma matéria que não pode ser descuidada; o meio possível para que a comunicação se realize de forma ativa. Diversos são os desafios que a montagem traz como questões relacionadas à performance, usos do corpo, ao universo do sensível, o cenográfico, bem como, o musical que colocam questões importantes quando pensadas em um contexto de diálogo intercultural.  Como um mito vivo, tempo, espaço e narrativa se articulam e ganham sentido de acordo com o ajuste cultural deste mito no contemporâneo. Trata-se de uma discussão que envolve a passagem de um mundo mitológico aos estudos da performance, trazendo uma ampliação do “lugar olhado das coisas”, para utilizar a expressão de Roland Barthes (1990, p. 58), ao “lugar sentido das coisas” e nesse mobilizar a produção de cenas para poder efetivar uma abordagem performativa de rituais.

 

[1] A palavra Orixá significa literalmente “cabaça-cabeça” e é como são chamados os deuses africanos da cultura Iorubá.

[2] Iemanjá, mito Iorubá, também conhecida como Yemonjá, é a divindade do rio Ogun. Associada à sereia, mulher – peixe, morando em determinados lugares do mar. Seu nome significa “mãe dos peixes” e sua imagem é associada à água, a deusa das primeiras águas, principalmente a do mar. Oxum, mito Ioruba, divindade do rio de mesmo nome, ligada a água e nela vive onde esconde os seus tesouros.   Olokun divindade do mar, no Benin considerado orixá masculino e no Ifé feminino.

[3] Não é aconselhável fazer comparações, muito menos afirmar que as divindades Vodun e os Orixás são os mesmos. No entanto, é possível fazer uma livre correlação baseada sobre os aspectos gerais das respectivas naturezas, em que cada um é caracterizado e mantendo a imparidade individual específica, para cada um. Desta forma o Vodun Daomeano Mamiwata, pode ser aproximado dos orixás Iorubanos Oxun, Olokun e Iemanjá, pois todos tem funções gerais como deuses da água.

[4] Além disso, há mitos da Mesopotâmia em que a deusa da grande água primeira, na história do Dilúvio da Criação, era conhecido como “Mami” (Mami Aruru ) como ela era conhecida em orações antiga Babilônia como sendo o criador da vida humana (Dalley: 2000, p. 51-16, Stone:1976, p. 7219). “ Uati ” is perhaps the first of more than ten thousand appellations of Isis (logos/wisdom) in her oldest generative form as the Divine African Mother, or Sibyl (Mamissii/Amengansie) prophetess. “Uati” é talvez o primeiro de mais de 10 mil denominações de Isis (logos/sabedoria) em sua forma mais antiga, como a Mãe Divina Africana, ou Sibyl (Mamissii/Amengansie) profetisa. Furthermore, Massey (1994, p. 248) informs us that the word “ Wata, Watoa, Wat-Waat ” which means “woman,” are all exact spellings in the ancient Sudanic languages spoken by the Baba, Peba and Keh-Doulan groups. Além disso, Massey (1994, p. 248) nos informa que a palavra “Wata, Watoa, Wat-Waat”, que significa “mulher”, são todas grafias exata em línguas antigas Sudanesas dito pelos grupos Baba, Peba e Keh-Doulan. In ancient Egypt, Uati was Isis’ oldest appellation, and was the first Mami goddess worshiped by the Egyptians as “the Holy Widow”, “ the Genitrix,” the “Self-Creator ”, “ the one who reigned alone in the beginning ”, “the one who brings forth the gods,” “ she who was mateless ”, and “ the Virgin (meaning ‘unmarried’) Mother. ” Thus, we have Isis originally worshiped as “Mama Uati” in ancient Egypt, and as Mami ( Uati/Aruru ) in ancient Mesopotamia, where she is first addressed and immortalized in prose by the gods. No antigo Egito, Uati era a mais antiga denominação de Isis “, e era a deusa Mami primeira, adorada pelos egípcios como” Viúva do Santo “,” o Genitrix “, o” Self-Criador “,” aquela que reinou sozinha no início” , “aquela que traz os deuses”, “aquela que foi mateless”, e “Virgem (que significa ‘solteira’) Mãe”.

[5] Estas terras na região do litoral norte/nordeste do Rio de Janeiro representam as antigas Fazendas Reunidas, Fazendas Campos Novos. Estas terras foram dadas a particulares que intermediavam, de forma intensa o comércio ilegal de homens e mulheres de origem africana nas praias da Rasa e José Gonçalves, o destino era levar para diversos pontos do litoral norte e redistribuir a “carga” nos grandes latifúndios de café e açúcar. Tal dinâmica se perpetua até a segunda metade do século XIX. Alguns remanescentes conseguiram se fixar na região, outros foram para cidades grandes, principalmente para a periferia, em busca de melhores condições de vida e trabalho.  Em todo este percurso encontramos através de nossa pesquisa, diversos indícios recolhidos através de história oral de antigas lendas e mitos de mulher/peixe, mulher/cobra, mulher/peixe/cobra.

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