O POVO DE RUA

O POVO DE RUA

Denise Zenicola

Escravos, de Charles Landseer (coleção Cândido Guinle de Paula Machado)

A proposta deste trabalho é estender um olhar sobre as Performance do cotidiano urbano  do povo que ocupava  as ruas do Rio de Janeiro, no século XIX.  Nestas, circulavam os escravos de ganho, os tigres, as lavadeiras, os pescadores, entre outros.   A grande maioria escravos, alguns escravos que conseguiram comprar sua liberdade e uma pequena quantidade de libertos, homens e mulheres que circulando nos seus afazeres diários foram  construindo, com  formas diversas e espetaculares, a cultura da cidade do Rio de Janeiro.

I –    Os escravos, a base da economia urbana

Durante praticamente todo o século XIX, a propriedade escrava foi comandada para a produção e venda de bens de consumo organizada em trabalho coletivo, a partir de um comando de produção.(1)  Nos centros urbanos, as casas eram uma espécie de unidade de produção e consumo, onde grande parte dos objetos pessoais e de  uso doméstico eram fabricados na própria residência. A produção doméstica era parte para consumo interno e o excedente para ser vendido nas ruas, pelos próprios escravos das casas.

O comando destas atividades ficava a cargo da mulher, a dona da casa. Era ela quem mantinha sob controle a limpeza da casa, a preparação dos alimentos, o comando das escravas, além de dirigir a indústria caseira, amas de meninos, carregadores, ganhadores, rendeiras, costureiras, lavadeiras, passadeiras ou de pintores, pedreiros e barbeiros onde, via de regra,…“As mulheres gerenciavam essa pequena empresa sem concurso algum do marido”(COSTA apud BAPTISTA, 1983,82). (2)
De uma grande variedade, as mercadorias dos tabuleiros das escravas ou escravos  – quitutes, bebidas, tecidos e toalhas bordadas – eram quase sempre orientadas pelas senhoras donas da casa.

Os escravos além de atuar no comércio ambulante e nas vendas  alegrando a cidade com seus gritos, seguidos de crianças que iam correndo pelas ruas atrás das mães, também transportavam pessoas em pequenas cadeiras, prostituíam-se ou pediam esmolas, além de executarem as tarefas domésticas cotidianas.

Os donos de escravos consideravam seus cativos animais de carga, máquinas e criados domésticos e de “ganho”(3).  Os escravos  cuidavam de todas as suas necessidades e realizavam toda sorte de trabalho mecânico para eles.  As formas de utilização da mão de obra escrava, bem como a forma de divisão dos lucros podiam variar de casa para casa:

…“certos escravos, pelo fato de ocuparem funções essenciais na dinâmica econômica da cidade, alcançaram relativa independência material, graças a um trabalho exercido longe dos senhores durante boa parte do dia e, às vezes, durante a noite.   Estes, sendo obrigados a entregar aos proprietários o total, ou uma porção, dos seus ganhos, constituem, certamente, um bom investimento”(Mattoso, 1997).

Ou seja, ao final do dia ou período de dias definido  pelo seu dono, o escravo deveria prestar contas, entregando parte ou o total das vendas efetuadas ou do serviço prestado, sob pena de punição.  A vida cotidiana do escravo era organizada e controlada por seu dono, embora fosse o agente do trabalho.

* transporte de carne de gado, de Jean Baptiste Debret, 1993, Belo Horizonte, Vila Rica Editora Reunidas, p.49

Embora os escravos quase sempre fossem impedidos de compartilhar da riqueza que geravam, o fato de poderem circular num ambiente urbano, a cidade do Rio de Janeiro, oferecia algumas possibilidades de ganho. Escravos habilidosos, dependendo de acordo prévio feito com seu dono, poderiam ter parte do seu lucro assegurado.   Alguns teriam até permissão de ter terras para desenvolver o seu plantio onde utilizavam esses quintais para plantar frutas e verduras e criar pequenos animais.  Estes escravos, uma exceção, poderiam criar desta forma  sua própria fonte de renda.

Os poucos que conseguiam prosperar poderiam comprar a sua própria liberdade e até investir seu dinheiro comprando escravos para servi-los, além de fazer diferenciados negócios envolvendo terras, alimentos ou jóias de ouro e prata, “Os mais ricos, por sua vez, facilitavam a entrada de outros escravos no negócio de vendas no Rio ou mascataria no interior”. (GRAHAM, 1988, 284).

De uma forma geral, o sistema econômico do “escravo de ganho” começava fora do centro urbano no campo ou nos subúrbios. Os donos mandavam trabalhar em hortas para produzir frutas , legumes e verduras  para vender na cidade.

Antes do dia clarear,  filas de escravos, partiam de sítios e fazendas das vizinhanças do Rio com carregamentos na cabeça. De acordo com Debret, o tiro de canhão que anunciava a abertura dos portos começava o dia às cinco e meia da manhã na cidade.

* Vendedores de capim e leite, Jean Baptiste Debret. In. O Brasil de Debret, 1993, Belo Horizonte, p. 43, Rio de Janeiro

Ao chegar na cidade, vendiam os produtos ou negociavam com outros vendedores que tinham pequenas bancas no mercado.   Normalmente este trabalho durava todo o dia e eles faziam apenas duas rápidas paradas, uma para o almoço e outra para a janta.

Carregando em grandes cestas trançadas, tabuleiros de madeira ou caixas sobre as cabeças, escravos de ambos os sexos vendiam de tudo; “artigos de vestuário, romances e livros, panelas e bules, utensílios de cozinha, cestas e esteiras, velas, poções de amor, estatuetas de santos, ervas e flores, pássaros e outros animais, escravos e jóias” (GRAHAM, 1988, 141 ).

As vendas eram feitas em tempo integral ou parcial, dependendo das necessidades do seu dono.  Ao anoitecer, os ambulantes poderiam trabalhar ainda em casa, caso houvesse necessidade.   Finalizando o dia de trabalho, se tivessem direito a parte do lucro, utilizavam seus ganhos para a compra de mais comida ou roupas, de objetos de ritual religioso, alguns importados da África ou talvez juntassem economias para comprar a  sua própria liberdade.

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