Pombagira e as faces inconfessas do Brasil, parte 1

Pombagira e as faces inconfessas do Brasil

Reginaldo Prandi

Do livro de Reginaldo Prandi, Herdeiras do Axé.
São Paulo, Hucitec, 1996, Capítulo IV, pp. 139-164.

I: Personagens de duvidosa moralidade

O Brasil tem uma larga tradição católica de devoção aos santos, com os quais os fiéis estabelecem relações de favor e de troca que presumem sempre uma certa intimidade com as coisas do mundo sagrado (Camargo et alii, 1973).  Com o espraiamento das tradições afro-brasileiras no curso deste século, parece que esta intimidade com personagens do mundo sagrado — agora sobretudo com  divindades afro-brasileiras, com as quais os santos se sincretizam, mais os espíritos dos mortos — teria se intensificado. De fato, há uma infindável lista de famílias ou classes de entidades sobrenaturais com que fiéis brasileiros podem estabelecer relações religiosas e mágicas e contatos personalizados, especialmente através de cerimônias em que essas entidades se apresentam através do transe de incorporação: os caboclos, preto-velhos, ciganos, príncipes, marinheiros, guias de luz, espíritos das trevas, encantados, além dos orixás e voduns.

Pombagira, cultuada nos candomblés e umbandas, é um desses personagens muito populares no Brasil.  Sua origem está nos candomblés, em que seu culto se constituiu a partir de entrecruzamentos de tradições africanas e européias.  Pombagira é considerada um Exu feminino.  Exu, na tradição dos candomblés de origem predominantemente iorubá (ritos Ketu, Efan, Nagô pernambucano) é o orixá mensageiro entre os homens e o mundo de todos os orixás.  Os orixás são divindades identificadas com elementos da natureza (o mar, a água dos rios, o trovão, o arco-íris, o fogo, as tempestades, as folhas etc.) e sincretizados com santos católicos, Nossa Senhora e o próprio Jesus Cristo.  Assim, Oxalá, o maior dos orixás, divindade da criação, é sincretizado com Jesus, Iemanjá, a Grande Mãe dos orixás e dos brasileiros, com Nossa Senhora da Conceição.  Exu, o orixá trickster, o que deve ser sempre homenageado em primeiro lugar, o orixá fálico, que gosta de confundir os homens, que só trabalha por dinheiro, é aquele sincretizado com o Diabo. [1][1]

Na língua ritual dos candomblés angola (de tradição banto), o nome de Exu é Bongbogirá.  Certamente Pombagira (Pomba Gira) é uma corruptela de Bongbogirá, e esse nome acabou por se restringir à qualidade feminina de Exu (Augras, 1989).  Na umbanda, formada nos anos 30 deste século do encontro de tradições religiosas afro-brasileiras com o espiritismo Kardecista francês, Pombagira faz parte do panteão de entidades que trabalham na “esquerda”, isto é, que podem ser invocadas para “trabalhar para o mal”, em contraste com aquelas entidades da “direita”, que só seriam invocadas em nome do “bem” (Camargo, 1961: Prandi, 1991a).

Dona Pombagira, que tem um lugar muito especial nas religiões afro-brasileiras, pode também ser encontrada nos espaços não religiosos da cultura brasileira: nas novelas de televisão, no cinema, na música popular, nas conversas do dia-a-dia.  Por influência kardecista na umbanda, Pombagira é o espírito de uma mulher (e não o orixá) que em vida teria sido uma prostituta ou cortesã, mulher de baixos princípios morais, capaz de dominar os homens por suas proezas sexuais, amante do luxo, do dinheiro, e de toda sorte de prazeres.

No Brasil, sobretudo entre as populações pobres urbanas, é comum apelar a Pombagira para a solução de problemas relacionados a fracassos e desejos da vida amorosa e da sexualidade, além de inúmeros outros que envolvem situações de aflição.  Estudar os cultos da Pombagira permite-nos entender algo das aspirações e frustrações de largas parcelas da população que estão muito distantes de um código de ética e moralidade embasado em valores da tradição ocidental cristã. Pois para Dona Pombagira qualquer desejo pode ser atendido: não há limites para a fantasia humana.

Embora conserve do candomblé a veneração dos orixás, a umbanda, religião que desenvolveu e sistematizou o culto a Pombagira como entidade dotada de identidade própria, é uma religião centrada no culto dos caboclos e preto-velhos, além de outras entidades. Embora o candomblé não faça distinção entre o bem e o mal, no sentido judaico-cristão, uma vez que o seu sistema de moralidade baseia-se na relação estrita entre homem e orixá, relação esta de caráter propiciatório e sacrificial, e não entre os homens como uma comunidade em que o bem do indivíduo está inscrito no bem coletivo (Prandi, 1991a), a umbanda, por sua herança kardecista, preservou o bem e o mal como dois campos legítimos de atuação, mas tratou logo de separá-losem departamentos estanques. Aumbanda se divide numa linha da direita, voltada para a prática do bem e que trata com entidades “desenvolvidas”, e numa linha da “esquerda”, a parte que pode trabalhar para o “mal”, também chamada quimbanda, e cujas divindades, “atrasadas” ou demoníacas,  sincretizam-se com aquelas do inferno católico ou delas são tributárias. Esta divisão, contudo, pode ser meramente formal, como uma orientação classificatória estritamente ritual e com frouxa importância ética. Na prática, não há quimbanda sem umbanda nem quimbandeiro sem umbandista, pois são duas faces de uma mesma concepção religiosa.

[1][1] Este artigo resulta de um projeto mais amplo de pesquisa sobre religiões afro-brasileiras que venho realizando desde 1987 em terreiros de candomblé e umbanda de São Paulo.  Para esse projeto, tenho tido contato também com terreiros do Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Distrito Federal, Maranhão, Pará, Amazonas, Ceará e Rio Grande do Sul, o que me permite, penso, poder trabalhar com classes mais generalizantes de conclusões. Neste artigo, procurei usar como fontes sobre a identidade de Pombagira as próprias cantigas de culto que estão registradas por autores umbandistas e que, de acordo com meu trabalho de campo, acham-se bastante disseminadas pelo país. Igualmente, procuro não me prender a situações muito peculiares e particulares deste ou aquele terreiro ou mesmo cidade.

Continua……

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