Assim, estão do lado “direito” os orixás, sincretizados com os santos católicos, e que ocupam no panteão o posto de chefes de linhas e de falanges, que são reverenciados, mas que pouco ou nada participam do “trabalho” da umbanda, isto é, da intervenção mágica no mundo dos homens para a solução de todos os seus problemas, que é o objetivo primeiro da umbanda enquanto religião ritual. Ainda do lado do “bem” estão o caboclo (que representa a origem brasileira autêntica, o antepassado indígena) e o preto-velho (símbolo da raiz africana e marca do passado escravista e de uma vida de sofrimentos e purgação de pecados). Embora religião surgida neste século, durante e em função do processo intenso de urbanização e industrialização, o panteão da umbanda é constituído sobretudo de entidades extraídas de um passado histórico que remonta pelo menos ao século XIX. Ela nunca incorporou, sistematicamente, os espíritos de homens e mulheres ilustres contemporâneos que marcam o universo das entidades do espiritismo kardecista.

De todas as classes de entidades da umbanda, que são muitas, certamente o preto-velho é o de maior reconhecimento público: impossível não gostar de um preto-velho, mesmo quando se trata de um não-umbandista.  Ele é sábio, paciente, tolerante, carinhoso.  Já o caboclo é o valente, o selvagem (o índio) antes de tudo, destemido, intrépido, ameaçador, sério, e muito competente nas artes das curas.  O preto velho consola e sugere, o caboclo ordena e determina. O preto-velho acalma, o caboclo arrebata. O preto-velho contempla, reflete, assente, recolhe-se na imobilidade de sua velhice e de seu passado de trabalho escravo; o caboclo mexe-se, intriga, canta e dança, e dança e dança como o guerreiro livre que um dia foi. Os caboclos fumam charuto e os preto-velhos, cachimbo; todas as entidades da umbanda fumam — a fumaça e seu uso ritual marcando a herança indígena da umbanda, aliança constitutiva com o passado do solo brasileiro.

Do panteão da direita também fazem parte os boiadeiros, os ciganos, as princesas. O boiadeiro é um caboclo que em vida foi um valente do Sertão.  Veste-se como o sertanejo, com roupas e chapéu de couro, e cumpre um papel ritual muito semelhante aos caboclos índios, que se cobrem de vistosos cocares. Igualmente são bons curadores. Ciganos dizem o futuro mas não sabem curar; como os príncipes, estão acima das misérias terrenas. Marinheiros sabem ler e contar, e conhecem dinheiro, o que não acontece com nenhuma outra entidade, mas carregam muito dos vícios do homem do mar: gostam muito de mulher da vida, bebem em demasia, são sempre infiéis no amor, e caminham sempre com pouco equilíbrio. Uma sua cantiga, imortalizada nas vozes de Clementina de Jesus e Caetano Veloso, diz:

Oh, marinheiro, marinheiro, marinheiro só

Quem te ensinou a nadar, marinheiro só?

Ou foi o to mbo do navio

Ou foi o balanço do mar

Lá vem lá vem marinheiro só

Como ele vem faceiro

Todo de branco, marinheiro só

Com seu bonezinho

O lado da esquerda é povoado pelos Exus e Pombagiras, basicamente (Arcela, 1980). Ambos são mal-educados, despudorados, agressivos. Falam palavrão e dão estrepitosas gargalhadas. Chegam pela meia-noite, os Exus com suas mãos em garras e seus pés feito cascos de animais satânicos, as Pombagiras com seus trajes escandalosos nas cores vermelho e preto, sua rosa vermelha nos longos cabelos negros, seu jeito de prostituta, ora do bordel mais miserável ora de elegantes salões de meretrício, jogo e perdição; vez por outra é a grande dama, fina e requintada, mas sempre dama da noite. Nas religiões afro-brasileiras, todo o cerimonial é cantado ao som dos atabaques, e quase todo também dançando. As cantigas dos candomblés e os pontos-cantados da umbanda são instrumentos de identidade das entidades. Assim, canta-se para Pombagira quando ela chega incorporada:

De vermelho e negro

Vestida na noite o mistério traz

Ela é moça bonita

Oi, girando, girando, girando lá

Se, por vezes, tanto Exus como Pombagiras podem vir muito elegantes e amigáveis, jamais serão, entretanto, confiáveis e desinteressados. Todo o mundo tem medo de Exu e Pombagira, ou pelo menos diz que tem. Desconfia-se deles, pois, se de fato são  entidades diabólicas, não merecem confiança, mesmo quando deles nos valemos. Eles fazem questão de demonstrar animosidade. Conheci muito Exu que chama todas as pessoas de “filho-da-puta”, que é a maior ofensa que se pode fazer a um brasileiro. Exus e Pombagiras fazem questão de demonstrar o quanto eles desprezam aqueles que os procuram.

Respostas de 17

  1. Boa noite!

    Embora o autor tenta passar uma visão mais generalizada possível, a frase citada a abaixo me causou surpresa:

    “Exus e Pombagiras fazem questão de demonstrar o quanto eles desprezam aqueles que os procuram.”

    Mesmo sendo uma visão generalizada, isto muito me espantou! Não conheço praticamente nada sobre estas entidades. Acho que fico até meio receoso de pequisar.
    No candomblé, só tive a oportunidade de participar de uma festa de exus/pombagiras uma unica vez. Já devem fazer por volta de uns 14 anos isto, porém me lembro bem o que eu presenciei. Foi algo impreciosante.

    Tenho este tema como uns dos mais misteriosos dentro das religiões de matriz africana.

    Obrigado por compartilhar!

    Abs
    Alex

    1. Alex, este é a grande beleza que temos na religião. A discussão de assuntos por diversas opticas e entendimentos diferentes.
      Eu em particular não concordo em nada com este comportamento citado pelo autor. Se admitirmos que as Pombagiras ou Exús, que são entidades exclusivas de umbanda, são “demônios/diabos” personagens da cultura Cristã, já demonstra que o sincretismo está muito mais presente do que o “recomendado” no inconsciente do filho que mistura nas suas manifetações mediúnicas, o preconceito e a degradação imposta a estas entidades tão especiais e respeitadas.
      Mas o importante é discutir os assuntos sem visões totalitaristas ou absolutas, de certos e errados ou com preconceitos. Acho que é isso meu irmão. Axé, Tomeje.

  2. ESTE É UM EXCELENTE EXEMPLO ACERCA DA GRANDE RESPONSABILIDADE QUE TEMOS DE INSTRUIR OS ADEPTOS DA NOSSA RELIGIÃO SOBRE O QUE SÃO ESSAS ENTIDADES, E O QUE BUSCAMOS EM NOSSOS RITUAIS. A DOUTRINA DAS ENTIDADES COMEÇA NO ORI DOS MÉDIUNS E SE ESTENDE A ESTAS FORÇAS QUANDO MANIFESTADAS.

  3. Boa noite!

    Concordo com vc Tomeje. Acredito que as entidades nada tem a ver com demônios, etc.
    Não sei de quem foi a idéia por exemplo, de vincular nome de exus com diabos da mitologia babilonica/hebreu (não sei ao certo). Já vi esta vinculação algumas vezes. Serve mais para atrapalhar do que informar propriamente dito.

    Tenho uma duvida…
    Como um sacedorte de Umbanda ou Candomblé consegue indentificar que aquela entidade manisfestada, é realmente quem diz quem e não um espirito zombeteiro ou obsessor? Tenho curiosidade em saber como que se consegue diferenciar…

    Obrigado!

    Alex

    1. Alex, antigamente as casas de umbanda, em geral, davam o tempo necessário para que a própria entidade desse seu nome. Era um processo lento e complexo, as vezes durava anos. O médium era observado a entidade era observada, seus modos, seu comportamento, sua sabedoria, sua vontade concreta em ajudar os que a procuravam. Em fim, havia menos urgencia. Hoje há pais e mães de santo que dão o nome da entidade atravez do jogo de búzios. Está tudo muito rápido. Sou ainda a favor do tempo e do merecimento. Se a entidade estiver bem educada/desenvolvida aí sim, ela pode reivindicar um nome e sobre nome. Axé. Tomeje.

      1. Tomeje, não sabia que antes se utilizava desde método…
        Achei temeroso sobre como este processo está sendo realizado hoje por alguns, afim de acelerar as coisas.

        Obrigado pela resposta!

        Alex

  4. toco umbanda em minha casa e que da o nome é a própria entidade pq isso vem através do desenvolvimento hoje o que se vemos jogou disse o nome e ja vão recebendo já com tudo id e CPF

    1. Edson, é como eu falei anteriormente, hoje há uma urgencia e uma necessidade muito grande em certos pais e mães de santo em mostrarem-se mais sábios e mais eficientes do que o demais. Isso me parece que está ligado ao mercado da fé. De um lado temos estes pais e mães que correm contra o tempo da religião para ganhar conceito e status de grandes manipuladores das energias/orixas/entidades. Mas do outro lado deste comercio da fé existe uma massa de pessoas que se dizem fiés e crentes nos orixas, mas que na realidade querem a resolução dos seus problemas como quem passa num drive thru e compra um lanche. Não se importam muito com o que tem no lanche, mas se matar a fome, estiver quentinho e forem atendidos rápidos está bom. Afinal eles estão pagando por aquele serviço e o querem rápido e a contento. O mesmo vemos em muitas casas de comércio da fé, um drive thru religioso.
      Fico muito feliz quando ouço que temos Casas (repare que as vezes coloco Casa e casa, as em letra minúscula são, para mim, os mercadores de fé) que ainda persistem na tradição de sua raíz, independentes de serem candomblé ou umbanda. O que importa, para mim, é manter a raíz e a sua traição. Grande axé para vc. Tomeje.

  5. Não concordo em nada com esse texto, sei que exu eles barganham, são espertos, nunca se promete a exu o que não pode dar,mais dizer que exu não são confiáveis, desprezam seus consulentes,são mal educados, por favor não generalize!Minha pombogira dona Maria Padilha das Almas linda, faceira, esperta, não brinca em trabalho,meu exu é meu guardião ele já me livrou de muitas, o que eu observo é que dentro dos próprios terreiros se deturpa a imagem de exu, exu é caminho, é força, proteção ele está mais próximo de nós, são educados. Discordo também do texto anterior, onde diz que apenas a periferia procura trabalhos de pombogira, pelo o que tenho observado no terreiro muito pelo contrário do que diz o texto, pessoas de classe alta vai a procura dessas entidades, saem muito satisfeitas e geralmente procuram por diversas vezes, resumindo exu é tudo de bom amo demais essas entidades e não gosto de ouvir falar neles desse jeito isso é preconceito!Laroye…

    1. Sandra, seja bem vinda. O texto do Professor Reginaldo Prandi, um dos grandes pesquisadores da nossa religião pode, até, te desagradar, vc pode ficar brava com ele e não gostar dos termos utilizados neste texto. Mas não podemos fechar os olhos para a realidade da maioria dos terreiros que trabalham com estas entidades que, em geral, são exatamente a descrição feita pelo Professor. Que bom que na sua Casa isso não é verdade, que bom que vc ama estas entidades e que na sua Casa Elas trabalham e ajudam as pessoas. Mas a verdade é dura e triste em muitos terreiros e o Professor só fez expor a situação caótica que vive a religião hoje em dia. Vamos conversar mais e procurar consensos e deixar de lado as divergências. Axé, Tomeje.

  6. A benção!E realmente lamentável que em muitos terreiros exus e pombogiras sejam colocados nessas condições de profanador de maldades ou seja, seriam as entidades ou os mediuns mal intencionados que usam dessas entidades para fazer maldades ou até mesmo tirar proveito da situação alheia? Bem sabemos que a maioria das pessoas vão procurar essas entidades já a beira do desespero, seja por ir mal nos negócios ou até mesmo o fim de um casamento. Desculpe mais acho que quando há evolução do medium há também evolução das entidades, sejam elas exus, caboclos, malandros! Infelizmente nesse texto só mostra digamos assim a face escura dessas belas entidades, com todo respeito ao professor Reginaldo Prandi porém, não podemos generalizar!

    1. Adepto, seja muito bem-vindo. Quando falamos de tradição, isso não existe. Na minha opinião pessoal, isso é invencionismo e só serve para deturpar a nossa religião. Penso que temos que inovar, modificar, tornar mais acessível e até evoluir alguns aspectos da religião como, por exemplo, a educação religiosa, mas quando começamos a misturar, por exemplo, seresta, eu fico imaginando que daqui a pouco vão começar a fazer festa funk, balada e rave para as entidades sob alegação de modernidade. Essa é a minha opinião. Felicidades. Axé, Tomeje.

  7. Boa noite Srº Tomeje!Isso as vezes nos deixam com um pé atrás,pois todas as atitudes da pessoa em si,a consulta com os búzios tem fundamento,demonstra certeza,mas como nunca ouvimos falar disso fica a dúvida.Na sua opinião estaria havendo mistificação da pessoa ou o quê seria?Desculpe perguntar assim mas é meio difícil aceitar,essa pessoa demonstra ter bom conhecimento dos fundamentos.Desculpe se falei demais,mas temos que procurar pessoas para ter esclarecimentos.

    1. Adepto, boa tarde. Hoje, aqui no Rio, tem crescido a moda de festas à fantasia para Pombo Gira. Há pouco tempo eu vi um rapaz que dançava para os Orixás com as duas mãos dentro dos bolsos da calça. Um outro diz que recebe o Exu “Darth Vader”, aquele personagem do “Guerra nas Estrelas”. Eu vi a filmagem de um rapaz sendo iniciado para pombagira. O pai de santo me disse que ele cultua uma mulher como Baba Egun, sendo que esse culto é exclusivamente masculino. Meu amigo, alguém que é sério e conhece o que faz, que conhece a tradição, não faz esse tipo de mistura que você citou. Por mais que você diga que é uma pessoa conhecedora de fundamentos, esse comportamento, assim como os outros que eu citei anteriormente, revela uma pessoa pouco comprometida com a tradição religiosa. Espero ter ajudado. Axé, Tomeje.

  8. boa noite, abri um jogo com uma pessoa porém não confiei na informação de abiku e em muitas outras, gostaria de pedir a indicação de um babalorixá confiável em são paulo se puder ajudar

    obrigado

    1. Márcio, seja muito bem-vindo. Eu indico meu irmão, em Campinas. O nome dele é Mário D’Ogum. Ilê Axé Ifé Ogum Oraminan – Candomblé queto. Rua Vitorino Ferrari, 100 – Barão Geraldo – CEP 13084-030 – Campinas – SP telefone: (19) 3289-5717, e-mail: babatonican@hotmail.com.
      Também indico o Babalorixá Cido D’Oxum. Ilê Dara Ase Osun Eyn – candomblé queto / Rua José Domingos Pontes, 7 – Vila Industrial – CEP 03986-100 – São Paulo-SP, telefone: (11) 6103-3653, e-mail: paicidoosun@bol.com.br http://www.osuneyn.cjb.net. Espero ter ajudado. Axé, Tomeje.

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