O POVO DE RUA

Denise Zenicola

(Carlos Castaneda)

* Rua Direita, no Rio de Janeiro, de Johan Moritz Rugendas, Itatiais, 3a div., p. 13.

Os espaços públicos no Rio de Janeiro do século XIX funcionavam como pontos de convergência – espaços dinâmicos de suporte de artes performáticas.  As praças e ruas tornavam-se pontos de encontros e facilitavam distintas formas de interação social entre seus freqüentadores  habituais, os escravos.  Tais espaços, constituíam-se, segundo Brugger a “base da estrutura e da identidade das primeiras cidades coloniais brasileiras”, evoluindo para o acontecimento de “inúmeras formas de interação social” (BRUGGER, 2000).  A chegada do peixe fresco ao mercado, as negras vendendo apetitosas frutas tropicais, o transporte de objetos nas carroças ou pessoas em cadeirinhas, pequenos intervalos roubados entre uma atividade e outra _ dão a medida da diversidade do meio urbano,  verdadeiros locais de trabalho, passeios, compras, vendas, encontro e performances políticas, como também de  castigos exemplares,  citando os pelourinhos, entre tantos.

Canto, dança e batuque no trabalho

Na rua, os negros cantavam e vendiam bugigangas, em praticamente todos os lugares, os escravos trabalhavam, nas mais diversas atividades e cantavam.

Os escravos do Rio cantavam em todas as ocasiões possíveis, no movimento do mercado, no pregão dos ambulantes.  Os grupos de carregadores cantavam em coro em suas línguas africanas ou em português enquanto circulavam pelas ruas com pesados fardos sobre as cabeças.   Era comum o canto como forma de manter o ritmo em trabalhos que exigiam a força do grupo  como equipe para manter a unidade; os escravos que puxavam  tonéis de água sobre um carro de quatro rodas, por exemplo, costumavam  cantar.

“ Vem, carga,

Vem logo para casa!…

Alguns donos espertos permitiam que seus escravos cantassem e até que um tambor os acompanhasse, pois assim obtinham mais trabalho deles”( GRAHAM, 1988, 125).

Ao circular na venda de seus produtos, havia um tipo de canto na cidade que era bastante peculiar.   Eram os pregões dos vendedores ambulantes, uma espécie de propaganda dos produtos à venda, que anunciavam as mercadorias pelas ruas.  Nos pregões, a performance consistia de cantos e gritos de melodias, em forma de rimas acompanhadas ou não de tambores ou violões, verdadeiros jingles de publicidade.  Às vezes, paravam para descansar, reunindo-se em torno de um cantor principal e cantando em grupo.

Quando era possível carregar junto com os produtos para venda, levavam pequenas Marimbas também conhecidas como Kalimbas ou Malimbas, um instrumento africano, composto de meia parte de um coco onde se prendiam pequenas hastes de metal , para serem tocadas com os dois polegares. “Os carregadores quase sentavam na frente de casas particulares passavam horas “distraindo-se com a própria música, produzida com quase o mesmo  esforço exigido para girar os polegares”. (RUSCHENBERGER apud GRAHAM, 1988, 316).

Havia tambores de muitos tamanhos e formatos, que podem ser facilmente identificados nos registros iconográficos do século XIX.   Com esses instrumentos de sua terra, celebravam e evocavam “lembranças de casa nas canções de sua terra natal”

(GRAHAM, 1988, 315).   Além de tambores, os cativos tocavam também chocalhos de cuia, muito usados na África para manter o ritmo.

Os escravos também improvisavam com as ferramentas da profissão tirando sons destes materiais para acompanhar suas músicas…..Ewbank observou a comemoração, de negros escravos construtores, pela colocação dos primeiros caibros do telhado de uma casa, quando “artistas negros e brancos lá do alto estavam batendo con gusto em vigas, alavancas e pranchas.  Ficaram assim até o dono aparecer e oferecer-lhes ‘uma doação’, depois do que ‘chocalharam com estrépito’ mais música ‘com martelos nas traves’”.

* Negros serradores de tábuas, de Jean Baptiste Debret. In. O Brasil de Debret, Belo Horizonte, Vila Rica Editoras Reunidas, p. 40.

Em outro exemplo, Ewbank cita que “encontrou um grupo de vinte negros que estava carregando toda a mobília de uma casa nas cabeças.  Enquanto ‘trotavam’, cantavam a intervalos numa língua angolana e seu líder marcava o ritmo com um ‘chocalho de cuia, orlado de trapos de tapete’ em sua mão” ( EWBANK apud GRAHAM, 1988).

Qualquer que fosse o tema ou motivo, os escravos cantavam no trabalho, acompanhados freqüentemente por instrumentos variados, uma característica essencial do ‘clima’ da cidade.   Dentre os instrumentos musicais utilizados, encontravam-se os africanos como também os europeus. Era comum que escravos tocassem: violinos em barbearias, orquestras da elite e bandas e coros de igreja.

Este hábito de usar instrumentos africanos e europeus e de misturar tradições musicais começou, em parte, com os escravos músicos que tocavam violinos para clientes brancos, enquanto esses cortavam os cabelos.

Além de tocarem instrumentos europeus, vários escravos aprenderam também as músicas européias …“os viajantes relataram que eles cantarolavam ou assobiavam as últimas modinhas de Portugal e polcas da Europa; e para surpresa deles, os negros aprendiam com facilidade a difícil música vocal européia, em especial aquela cantada em latim pelos coros religiosos da época …“dos repertórios de antífonas católicas em latim a canções românticas francesas, de animadas polcas e lentas modinhas portuguesas e canções populares cariocas” (GRAHAM,1988, 326).

A música branca das Igrejas e salões do Rio de Janeiro chegava às ruas da cidade, os escravos cantavam acrescentando melodias européias à batida dos tambores.

Além de cantos e batuques, os escravos dançavam.   Em qualquer lugar podia-se formar uma roda de batuque que naturalmente evoluía para uma dança animada e ‘frenética’, segundo o termo de muitos historiadores.  Debret cita em seus relatos:

…“o escravo parava na rua e começava a cantar; outros, que eram seus compatriotas, reuniam-se em torno dele.   Acompanhavam-no com um refrão ou um certo grito, um tipo de refrão estranho articulado em dois ou três sons.   Após o canto, começava uma pantomina improvisada por aqueles que iam para o centro do círculo.   Durante a encenação, as faces dos atores ficavam possuídas por “delírio”. Outros ainda batiam palmas, duas batidas rápidas para uma lenta.   Com o fim da canção, o encantamento desaparecia; cada um seguia seu caminho friamente, pensando no açoite do senhor e na necessidade de  terminar o trabalho que fora interrompido pelo “delicioso intermezzo” (  apud GRAHAM, 1988, 322).

Além da dança recreativa, a dança do jogo lúdico ou ritual, da roda, havia ainda a Capoeira, luta em que aprendiam golpes mortais – luta destinada à auto- defesa e  a seus inimigos.(1)   No século XIX, os negros de ganho e os carregadores praticavam essa forma de dança – luta e freqüentemente chegavam a ser presos por ferir  ou mesmo matar um
inimigo com um golpe.  Com o passar dos anos, a Capoeira foi proibida, porém, quando a polícia não estava por perto, os escravos usavam os  momentos de ócio jogando  a Capoeira nos mercados do Rio. Desta forma, o canto, a dança e o batuque, ocorridos nas ruas do Rio de Janeiro, definiam o ritmo do trabalho, do lazer, da dor, do tédio, do Banzo.   A presença dos ritmos e movimentos africanos marcavam na cadência do compasso a presença da escravidão no Brasil.

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